domingo, 23 de maio de 2010

DATAS SÃO PONTAS DE ICEBERGS


Cito Alfredo Bosi - meu magister- sobre questões que me incomodam desde que comecei a graduação em História:

"DATAS
1492,1792,1822,1922.
Datas. Mas o que são datas?
Datas são pontas de icebergs.

O navegador que singra a imensidão do mar bendiz a presença dessas emersas, sólidos geométricos, cubos e cilindros de gelo visíveis a olho nu e a grandes distâncias. Sem essas balizas naturais que cintilam até sob a luz noturna das estrelas, como evitar que a nau se espedace de encontro às massas submersas que não se vêem?
Datas são pontas de icebergs. (...)


1956 (...)

Debaixo dessa ponta de iceberg, o que vamos encontrar?

Em 1956 o presidente bossa-nova, Juscelino Kubitscheck, recém empossado, lança o seu ambicioso Programa de Metas que incluirá a mudança da Capital para o Oest, a ousada construção em pleno e ermo cerrado de uma cidade inteiramente planejada, Brasília, pensada por dois paladinos da nossa modernidade artística, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

1956 significará também a abertura do país ao capitalismo internacional e a criação da indústria automobilistica. 56, na cabeça dos políticos modernizadores, representa o ano do deslanche do desenvolvimento, a aceleração dos ritmos. Cinquenta anos em cinco, eis um lema sintomático que, para nós, tem tudo a ver com a imagem daquele tempo vectorial, daquele tempo-flecha que avança na direção de um estágio que deverá superar os anteriores. Um ritmo que quer queimar etapas; de resto, sabe-se que acelerar o processo se diz também: aquecer a economia.

Aos olhos de uma sociologia reducionista da cultura, pela qual o externo dos fatos sociais se converte no interno das criações da arte, o programa modernizador de Juscelino teria encontrado a sua imagem especular no lançamento da Poesia Concreta em São Paulo naquele mesmo ano quente de 56. (...)

1956 é também o ano em que Guimarães Rosa, o maior escritor brasileiro do século, lança o seu Grande sertão:Veredas.

Agora, debaixo da ponta do iceberg, as massas submersas apresentam outra e estranha consistência.

Em Rosa a linguagem narrativa não é só sitáxe, sequência, é também mito e poema. Como tal, alcança reviver, polifonicamente, as riquezas e os enigmas da sabedoria arcaica mediante a travessia pelas mentes e pelos corações sertanejos e pela sua oralidade tal como se manifestava nas Minas Gerais do começo do século.(...)
Mas onde estamos em 1956? No mito, na linguagem arcaica e popular, na evocação do contexto jagunço , na volta apaixonada^à natureza mais agreste? Ou na arrancada para a modernização definitiva?
João Guimarães Rosa, cidadão que, na vida profissional e pública, foi estreitamente ligado ao governo de Juscelino, dá as costas para qualquer veleidade modernizante. O seu tempo existencial é outro. Outra é a sua matéria vertente.(...)"
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BOSI, Alfredo. O tempo e os temposIn: NOVAES, Adalto (org.) Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras. 1992 Pp. 19-32