segunda-feira, 11 de outubro de 2021

ROMANCE E ADAPTAÇÕES

 


Com o termino da Mostra de Cinemas Africanos ontem, já comecei a cumprir minha promessa de retornar ao Ojuobá. Assisti a todos os vídeos da série "Tenda dos Milagres" (1985) disponíveis no Youtube e achei bem bonito, claro. Muitos atores negros e "mestiços" (Nelson Xavier, Milton Gonçalves, Chica Xavier, Gracindo Júnior, Antônio Pompeo, Solange Couto, Joel Silva, Antônio Pitanga, Tony Tornado, Tânia Alves, Dhu Moraes.etc) se saindo muito bem e essa trilha sonora é da gente levar pra vida:

01. MILAGRES DO POVO – Caetano Veloso

02. LIVRE – Beth Bruno

03. OLHOS DE XANGÔ (AFOXÉ) – Moraes Moreira

04. É D’OXUM – MPB 4

05. ELOIÁ – Dudu Moraes

06. FLOR DA BAHIA – Nana Caymmi

07. OIÁ – Danilo Caymmi

08. AMOR DE MATAR – Tânia Alves

09. AFOXÉ – Dorival Caymmi

10. MALUCO PRA TE VER – Wálter Queiróz

Produção musical: Guto Graça Mello

Não sei se alguma dessas canções foi composta para a série, sei que o tema de Caetano  foi uma homenagem ao Jorge Amado, que teria dito em entrevista, a maravilhosa frase que abre a canção "quem é ateu e viu milagres como eu ", o que é a cara de Jorge e a alma do romance Tenda dos Milagres!  

Como é uma adaptação para TV, ela é e não é fiel ao livro. No romance temos dois tempos diferentes, o da vida de Pedro Arcanjo o intelectual orgânico nas décadas de 1920/1930 e toda a discussão (inclusive teórica, científica da época) sobre posição do negro na sociedade num país que tinha nem 30 anos de abolição da escravatura, a perseguição ao candomblé e capoeira e etc. E também tem o tempo da redescoberta de Pedro Arcanjo na década de 1960, que foi alçado ídolo da Bahia pelo Nobel em sociologia estadunidense James Dean Leverson, trazendo à tona e todo cenário ideológico binário do contexto da ditadura militar : todo mundo queria um pouquinho da memória de Arcanjo pra sua luta.
Sabemos, e nos relembra a Wikipédia, que as personagens dos livros de Jorge Amado foram baseadas em
"pessoas reais,- quando não as inseriu com os próprios nomes em suas obras. O rábula João Romão foi baseado em Cosme de Farias - um célebre defensor dos pobres em Salvador. O professor Silva Virajá era o médico também célebre Pirajá da Silva. O delegado Pedrito Gordo era o chefe de polícia Pedrito Gordilho, famoso por perseguir o candomblé e os capoeiristas.

Até o personagem principal, Pedro Archanjo, foi inspirado numa pessoa real, o negro Manuel Querino. Como no livro de Jorge Amado, Manuel Querino notabilizou-se por escrever vários livros de caráter antropológicos e étnicos (um deles sobre a culinária baiana e um outro, considerado muito importante, que traça a genealogia da elite branca de Salvador, mostrando a sua miscigenação com a raça negra). O adversário intelectual de Pedro Arcanjo é Nilo Argolo, provavelmente inspirado na figura do médico e antropólogo brasileiro Nina Rodrigues que ficou conhecido por suas afinidades com as teorias racistas de Lombroso e outros." Tenda dos Milagres

Na série global, pelo que deu para ver (20 episódios, quase tudo), temos retratado só a primeira parte, a da Bahia nos anos 30. Eles tem esse direito e a Globo sempre faz esse tipo de recorte ( depois fizeram a mesma coisa com o "O Tempo e o Vento", retiraram a parte das discussões políticas mais atuais). Sobre o Tenda, só destaco que, por exemplo, se na série Ana Mercedes vira par romântico de Pedro Arcanjo, no romance ela nunca chegou a conhecê-lo, tendo nascido depois que ele morreu , pois no romance ela é só a namorada do poeta ("vate, amante e côrno") Fausto Pena, o narrador do livro, que por alguns dólares, aceita escrever sobre como ela o traiu com o tal do nobel americano (Jorge Amado me diverte rsrs) Sobre a trilha sonora eu achei irretocável, maravilhosa, somada à imagem dos atores, a gente realmente se ambienta numa cidade "mestiça" (a ideia mestra de Jorge Amado, de sua época, e do livro) dos anos 20/30 (Salvador).
Só alguns comentários...

Sobre o filme (1977) de Nelson Pereira dos Santos, ele é mais fiel à história original, começa com a redescoberta de Pedro Arcanjo, Ana Mercedes,
namorada do Fauto Pena , no papel que lhe é devido, e ao redor do professor James Dean Leverson. Mas é bem ambientado nos anos 70, mostra o conflito sugerido no livro de Amado, mas no filme aparecem outras coisas como comícios, onde Arcanjo morre, inclusive. discute-o, mas a questão teórica fica à parte e nisso é bem ao contrário da adaptação da Globo, que é esteticamente mais bonita. No filme eu destaco apenas lindíssima cena (no livro está na p.200-2) na qual o professor Fraga Neto e Pedro Arcanjo discutem sobre a legitimidade de um cientista frequentar o Candomblé e Pedro argumenta que é possível para ele, que é mestiço e tem o objetivo compreender a cultura do Brasil, nem de branco nem de negro, mas mestiça, para a qual não basta apenas ser materialista, é preciso conciliar teoria e vida para o bem do povo e a clareza e confiança de Arcanjo vai golpeando o professor amigo com palavras, que ao final conclui que ele tem razão e deveria estar em uma cátedra na Universidade e Pedro responde que não quer subir, que anda é para frente, no filme a cena vai de (1 hora :44 minutos a 1 hora : 48 minutos).esta peleja, que sintetiza a obra, vale pelo filme todo.

Neste vídeo, a partir de 3' 25", é dito que a obra de Jorge sofreu processo de simplificação, muito devido às adaptações para TV e cinema, que acabam apagando parte das discussões colocadas nos romances, como eu coloco acima.