Do desenho
O que me agrada principalmente, na tão complexa natureza do
desenho, é o seu caráter infinitamente subtil, de ser ao mesmo tempo uma
transitoriedade e uma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a ser muito mais
uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica. Creio ter sido
Alain quem chegou até o ponto de afirmar que o desenho não é, de natureza, uma
plástica; mas se há exagero de sistema
numa afirmativa assim tão categórica, sempre é certo que o desenho está pelo
menos tão ligado, pela sua finalidade, à prosa e principalmente à poesia, como
o está, pelos seus meios de realização, à pintura e à escultura. É como que uma
arte intermediária entre as artes do espaço e as do tempo, tanto como a dança.
E se a dança é uma arte intermediária que se realiza por meio do tempo, sendo
materialmente uma arte em movimento; o desenho é a arte intermediária que se
realiza por meio do espaço, pois a sua matéria é imóvel.
Mas o desenho, da mesma forma que as artes da palavra, é
essencialmente uma arte intelectual, que
a gente deve compreender com os dados experimentais, ou melhor, confrontadores,
da inteligência. É fácil de provar este caráter antiplástico do desenho. Ele é,
ao mesmo tempo, um delimitador e não tem limites, qualidades antiplásticas por
excelência. Toda escultura, toda pintura, sendo um fenômeno material, nos
apresenta um fato fechado, que se constrói de seus próprios elementos
interiores, inteiramente desrelacionado com o que para a estatua ou para
quadro seria o não-eu. Os limites da tela, por exemplo, representariam
para o quadro uma verdade infinitamente poderosa, que se impõe tanto como a
disposição dos volumes e das cores, que o pintor escolherá para seu assunto.
Mas este é na realidade e de certa maneira, de valor secundário, pois o que
importa, antes de mais nada, para que se dê pintura legítima, é eue haja
composição. E esta se dá justamente em relação aos limites da tela. Só mesmo
para o quadro, o painel, o afresco e para as manifestações de escultura é que
se pode aplicar crítica e esteticamente
a palavra ‘composição’. Aplicá-la
a desenho é um contrasenso, ou pelo menos abusivo.
Porque o
desenho é, por natureza, um fato aberto. Se é certo que objetivamente ele é
também um fenômeno material, ele o é apenas como uma palavra escrita. Nós temos
dados positivos para saber que, de fato, foi do desenho que nasceu a escrita
dos hieróglifos. Não sabemos como se originou a pintura, mas é muito mais
provável que sua primeira conceituação em
vermelho no espírito humano, tenha provindo dos rabiscos rituais, em preto, em vermelho, em branco, com que todos os povos
primitivos se enfeitam no corpo, para os cerimoniais. Jean de Bosschere faz uma
observação muito interessante neste sentido. Diz que o desenho implica de tal
forma um desenvolvimento intelectual maior, uma civilização mais adiantada que
não é encontrado entre os povos naturais, ao passo que quase todos estes já se
utilizam de processos primários de pintura. A afirmação, apesar do seu caráter
dogmático bastante errado, não deixa por isso de ser interessantíssima. Não é
inteiramente exato que não se encontre ) o desenho entre civilizações
consideradas ‘primitivas’. São raras é verdade, mas existem, como por exemplo
os bochimanos e certas tribos da América do Norte, que usam o desenho
às vezes com tanta mestria como os magdalenianos do pré-histórico. Em
todo caso, qualquer destes poucos exemplos que lembro agora, tem o desenho
misturado ou com a cor, como é o caso dos bochimanos, ou com o sulco escultórico, como
nas cavernas pré-históricas. O que se poderia talvez argumentar é que esses
povos tenham chegado ao desenho através da pintura e da escultura.
Argumentação mais forte contra a afirmativa de Bosschere é
que, mesmo a pintura do corpo, entre os
povos mais atrasados mentalmente, é sempre uma escritura, de natureza
hieroglífica. Hoje isso é questão passiva da etnografia, e sabemos definitivamente
que cada rabisco, a cada cor, a cada mancha , a cada decoração enfim, os
primitivos atribuem um valor simbólico, e cada elemento quer dizer alguma coisa
compreensível à inteligência do clã ou pelo menos dos seus pajés. Tudo tem
sentido, tudo tem valor de magia exorcistica ou propiciatória, e o primitivo
jamais se pinta pelo simples prazer de se enfeitar. Esta noção de prazer só viria
se conceituar posteriormente, conforme a doutrina aristotélica. Assim, em
contrário à afirmação de Bosschere, as pinturas primitivas participam muito
mais da natureza e da essência caligráfica do desenho, que da pintura
propriamente dita.
E com efeito, na infinita maioria, todas essas decorações
simbólicas do ser primitivo, são como o desenho, um fato aberto. Não é o limite
natural do rosto, fechado pela cabeleira do ângulo do maxilar inferior, não é o
limite imposto pelo peito, que fecham essas
pinturas corporais, ma antes elas se disseminam pelas faces, pelo corpo, sem o
princípio da composição fechada. Desconhecem portanto o elemento instintivo, da mesma forma
que o desenho o desconhece, ao passo que a pintura o implica fatalmente. Um quadro
sem moldura, está sempre de alguma forma emoldurado pelos seus próprios e
fatias limites de composição fechada. Ao passo que colocar moldura num verdadeiro
desenho, que só participe da sua exata natureza de desenho, que só participe da
sua exata natureza de desenho, é uma estupidez que toca às raias do vandalismo.
Os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente
folhear, são para serem lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são
quadrinhas e sonetos.
O verdadeiro limite do desenho não implica de forma alguma
o limite do papel, nem mesmo pressupondo margens. Na verdade o desenho é
ilimitado, pois que nem mesmo o traço, esta convenção eminentemente
desenhística, que não existe no fenômeno da visão, nem deve existir na pintura verdadeira
ou na escultura, e colocamos entre o corpo
e o ar, como diz Da Vinci, nem mesmo o traço o delimita. Desenha-se um
perfil,por exemplo, e o traço pára em meio, ao chegar no colo, ou n a raiz da
cabeleira. Risca-se a expressão de u’a mão, a que um braço não continua; ou o
movimento que fez agora este cabrito. E o cabrito não se apoia num chão.
Poderão argumentar
que estou exemplificando apenas como uma espécie de desenho, o esboço, o
croquis, me esquecendo dos desenhos completos. Mesmo estes, milhares de vezes
ultrapassam os limites de um quadrilátero imaginado, ou prescindem dele. Não me
esqueci, porém, dos desenhos completos, apenas
afirmo que, quando eles implicam definidamente a moldura quadrangular ou
circular, estão invadindo terreno alheio, terreno que é da pintura, terreno
exclusivamente plástico que exige composição. A pintura também de utiliza das
formas naturais e tanto pinta uma maça como um nu. Mas não exige o traço, e,
quando o emprega, está invadindo o domínio do desenho. Não exijo nem desejo que
a pintura seja abstrata. Deus me livre! Mas quando ela se aplica, mesmo no bom
quadro de gênero, como o holandês, a representar coisas e fatos, ela procura
descobrir e representar um elemento de
eternidade. E é por isto que a transposição da ‘matéria’ de um peixe, de um planejamento
como de uma Madona ou de uma ‘maja’, por
meio da ‘matéria’ do óleo, da têmpera, da parede colorida, tem valor
intransigente na validade estética de uma pintura, ao passo que no desenho esse
problema de transposição não quer dizer nada. A bem dizer, não existe.
A pintura busca sempre elementos de eternidade, e por isso
ela tende ao divino. O desenho, muito mais agnóstico, é um jeito de definir
transitoriamente, se posso me exprimir assim. Ele cria, por meio de traços
convencionais, os finitos de uma visão, de um momento, de um gesto. Em vez de
buscar as essências misteriosas e eternas, o desenho é uma espécie de
definição, da mesma forma que a palavra ‘monte’ substitui a coisa ‘monte’ para
nossa compreensão intelectual.
E foi isto que
afirmei, no início deste artigo, ser o desenho ao mesmo tempo uma transitoriedade
e uma sabedoria. Ele é uma espécie de provérbio, uma experiência vivida e
transformada numa definição eminentemente intelectual. Tem assim, a mesma força
equilibrada e clássica dos provérbios. O desenho não é uma frase, é uma
frase-feita. Da mesma forma como a frase feita, o provérbio, o dito, vão se
fixando aos poucos, numa luta grave entre o sentimento e a sua expressão, até que, livres de elementos condicionais,
se organizam em sua forma definitiva: também o desenho se liberta das
fragilidades sentimentais da frase espontânea, por ser mais lento na sua luta
entre a visão recebida ou imaginada e
sua expressão gráfica. Essa luta, esta lentidão, permitem ao desenho o tempo, a
depuração , que a frase de conversa não tem. E ele assume, assim, a natureza
essencialmente poética do provérbio.
Digo ‘poética’ porque o provérbio, mesmo quando fixado em linha de prosa, é
pura poesia: emprega os processos essenciais da manifestação poética, é da
natureza eminentemente definidora da poesia, e não da natureza descrevedora e contemporaneamente
raciocinanteda prosa. Todo conceito, todo o grito, toda oração, todo fim
verbalizado da experiência fisiopsíquica, é poesia. E com efeito, os livros sagrados, os
provérbios, as frases feitas, as máximas, orações e ritos, são sempre
fortemente ritmados, e usam frequentemente os processos materiais da poesia, as
metrificações e a rima.
Mas nós todos estamos cansados de saber que a sabedoria
dos provérbios se não é de todo mentirosa, é eminentemente transitória. Não representa nenhuma
eternidade, mas a verificação de um momento; e não é menos verdade que a cada
provérbio existente podemos quasi sempre opor outro provérbio que o contradiz
completamente. Sim, se nos quixamos de algum mau governo, dirá o chileno
descontente que é porque a galinha do vizinho é mais gorda do que a nossa; mas se
ele se queixa, lhe responderemos que cá e lá más fadas há. E assim o provérbio
é muito mais a definição de uma verdade transitória, mansa como a reflexão
conceituosa de um chim, que uma verdade
eterna, filosóficamente provável. Essa a
natureza delicioso do desenho, que é transitório e sábio como um provérbio,
terrestremente momentaneamente conceituoso como um provérbio. Uma esperança de
conforto...
ANDRADE, Mario de. Do desenho. In: Aspectos das artes plásticas no Brasil. 2ª. Ed, São Paulo : Martins, 1975.p. 69-77