Depois de comentar filme a filme e fazer até um resumo final, até achei que já tivesse esgotado o assunto da fundamental mostra de cinema que tornou tolerável minha quarentena neste primeiro semestre, porém três canções que ouvi nos filmes não saem mais da minha cabeça. Gravei as três em MP3 e, de vez em quando, volto a ouvir e me emociono. Das três, duas são adaptações de poemas e uma foi feita especialmente para o filme. Pena que não sei disponibilizar arquivo MP3 aqui no blog, mas vou comentar pelo menos a letra de cada uma.
Pela ordem em que apareceram na Mostra, a primeira é “Caminho do Mato”, inspirada no poema de Agostinho Neto, e apareceu na mostra no filme algolano Sambizanga (1972), de Sarah Maldoror.
Segundo a pesquisadora de cinema angolano Renata Dariva (PUCRS), que participou da mostra, essa música aparece em vários filmes de Angola, como se fosse uma canção nacional. A letra é bem significativa: o caminho do mato é o caminho da nossa vida, da vida do africano, da vida do angolano :
Caminho do matocaminho da gentegente cansadaÓóó - oh!Caminho do matosoba grandecaminho do sobaÓóó - oh!Caminho do matocaminho de LembaLemba famosaÓóó - oh!Caminho do matocaminho do amordo amor de LembaÓóó - oh!Caminho do matocaminho das floresflores do amor.
Por nossa sorte, ela é trilha sonora de uma das mais belas cenas do filme está disponível no Youtube e podemos ouvi-la aqui
*
A segunda canção também está em um filme angolano, o “Ar-condicionado” (2020), de Fradique. A canção, originalmente composta para o filme é interpretada por Aline Frazão e se chama Matacedo , toca na cena em que o personagem Matacedo, um ex soldado lesado de guerra, que entra na máquina de extrair memória em carro , fecha os olhos e vamos vendo o carro passear por uma Luanda bonita, de dia, de noite, na chuva, com prédios novos com a canção, cantada por Aline Frazão, de forma muito sincopada, assim como o filme, a música dá um passo e volta dois, como é o ritmo da memória de Matacedo, mas também uma fala sobre Angola:
Quando eu fecho os olhos imagino um país novo
quando eu fecho os olhos eu me lembro de novo
para não me dissolver no cassino da lembrança aperto passo na dança, obstinada dos dias
tudo era bem melhor no tempo em que ainda me vias
tempo tempo tempo, tempo, tempo
de noite adormece o meu corpo antigo
enferrujado e doído, como um sobrado em ruínas
Sonho para não esquecer e esqueço ao amanhecer
Consegui o link para se ouvir a canção, espero que não o tirem do ar, porque não paro de ouvir essa.
*
A última canção aparece no filme "Heremakono - À Espera da Felicidade " (2002), de Abderrahmane Sissako, que é um filme sobre o sentimento de estrangeiridade em sua própria terra de origem . A canção "Amor à terra natal", que é cantada pelo menino Khatra, é também um poema de Paul Niger de 1962:
Passarinho que canta
seu amor pela terra
natal
vou escolher o
que vai comer
e trazer para você
Interessante é que o menino é proibido de cantar esta canção, mas canta mesmo assim e é tão lindo que, mesmo sendo em árabe, eu canto junto em português, como se fosse uma canção originária, que dispensa o significado das palavras.
Poemas, canções, e filmes são as vozes da África, para quem deseja ouvi-la.