sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Olhar , por Julio Cortázar
"os olhos perdidos no fastio daquele interregno em que todo mundo parece consultar uma área da visão que não é circundante, salvo as crianças que olham fixo e em cheio para as coisas até o dia em que lhes ensinam a situar-se também nos interstícios, a olhar sem ver com aquela ignorância cortês de toda presença vizinha, de todo contato sensível, cada qual instalado em sua bolha, alinhado, entre parênteses, cuidando em manter o mínimo de espaço entre joelhos e cotovelos alheios, refugiando-se no France Soir ou em livros de bolso, embora quase sempre como Ana, uns olhos situando-se no oco entre o verdadeiramente olhável, naquela distância neutra e estúpida que ia de minha cara à do homem concentrado no Figaro." Julio Cortázar - 'Manuscrito achado num bolso' p. 40-1
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Mais fragmentos lidos por Cortázar
Acho que o trecho, traduzido, pode ser esse aqui: "Não estávamos apaixonados, fazíamos amor com um virtuosismo com um virtuosismo desligado e crítico, mas sempre caímos, depois, em terríveis silêncios. A espuma dos copos de cerveja ia ficando como estopa, amornando e contraindo-se, enquanto nos olhávamos e sentíamos que chegara o momento. A Maga acabava por levantar-se e dava inúteis voltas pelo quarto. Mais de uma vez, vi-a admirar seu corpo no espelho, segurar os seios com as mãos, como nas estatuetas sírias e passar os olhos pela sua pele numa lenta carícia. Nunca consegui resistir ao desejo de chamá-la para meu lado, sentindo-a cair pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo" Julio Cortázar. O Jogo da Amarelinha, p. 08-9.
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O Jogo da amerelinha
Manuscrito achado num bolso
"Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo. Digo ruptura para compreender melhor (teria de compreender tantas coisas desde que comecei a jogar o jogo) aquela esperança de uma convergência que talvez me fosse dada no reflexo em uma vidraça de janela. Ultrapassar a ruptura que as pessoas não parecem observar embora sabe-se lá o que pensam essas pessoas agoniadas que sobem e descem dos vagões do metrô, o que procura além do transporte essa gente que sobe antes ou depois para descer depois ou antes, que só coincide numa zona do vagão onde tudo está decidido por antecipação sem que ninguém possa saber se sairemos juntos, se eu descerei em primeiro lugar ou esse homem magro com um rolo de papéis, se a velha de verde continuará até o fim, se esses meninos descerão agora, é claro que descerão, porque recolhem seus cadernos e suas réguas, aproximam-se rindo e brincando da porta enquanto lá no canto uma jovem se instala para demorar, para permanecer ainda por muitas estações no assento enfim livre, e aquela outra jovem é imprevisível, Ana era imprevisível, mantinha-se muito tesa contra o encosto no assento da janela, já estava lá quando subi na estação Etienne Marcel e um negro abandonou o assento em frente e a ninguém pareceu interessar e eu pude escorregar com uma vaga desculpa por entre os joelhos dos dois passageiros sentados nos assentos externos e fiquei defronte de Ana e quase em seguida, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo, procurei o perfil de Margrit no reflexo da vidraça da janela e pensei que era bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve que penteava em diagonal à testa." Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 39-40 "
"Assim foi com Paula (com Ofélia) e com tantas outras que se tinham concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, a dobra de uma revista, mais uma vez foi o poço onde a esperança se enredava com o temor numa intensa cãibra de aranhas até a morte, onde o tempo começava a latejar como um segundo coração no pulso do jogo; desde esse momento cada estação do metrô era uma trama diferente do futuro porque o jogo decidira daquela maneira; o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana à contemplação do fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo dia começara a celebrar contra tudo quanto fosse razoável, preferindo os piores desencontros às correntes estúpidas de uma casualidade cotidiana. Explicá-lo não é difícil mas jogá-lo tinha muito de combate às cegas, trêmula suspensão coloidal na qual todo itinerário erguia uma árvore de imprevisível percurso." Manuscrito achado num bolso', p. 42.
".. continuar vivendo até que, pouco a pouco, horas ou dias ou semanas , a sede de novo reclamando a possibilidade de que tudo coincidisse eventualmente, mulher e vidraça da janela, sorriso aceito ou rejeitado, conexões de trens e então finalmente sim, então o direito de aproximar-se e dizer a primeira palavra, espessa de tempo estancado,de incacabável pilhagem no fundo do poço entre as aranhas de cãibra. " Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p.43
"Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado" Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 46
Esse conto abre infindáveis caminhos ... amo literatura!
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Octaedro
Boca, em "Jogo da Amarelinha"
"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno do tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha não escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha./Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de frangância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta, e eu te sinto tremular contra mim, como um lua na água." Julio Cortázar - 'O Jogo da Amarelinha", p. 28
Um trecho na voz de Cortázar:
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As 'turas' de Julio Cortazar
Um trecho do romance de Cortazar:
"Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade,uma tura,a sociedade, uma tura, o amor pura tura, a beleza, tura das turas. (...) arde-nos um fogo inventado, uma tura incandescente, um artifício da raça (...) ardemos em nossa obra, fabulosa honra mortal, alto desafio da fênix. " Julio Cortazar, "O Jogo da Amarelinha", p. 338.
Esse é o contexto do século XX, propriamente dito! Dai eu ter estudado a "escritura" de Guimarães Rosa em meu doc, mais que e isso : a presença criativa da ideia de infância (com toda sua alta tentencia a fabulação) como elemento daquela escritura. Viva Cortazar, viva Rosa, vida a literatura! <3 nbsp="" p="">3>
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SÉCULO XX
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