quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez

"É apenas na aparência que inesperada e surpreendente história de amor entre um ancião e uma ninfeta se insere numa tradição da qual fazem parte  o VladimirNabokov de Lolita, o Thomas Man de Morte em Veneza e o Yasunari Kawabata de A Casa das belas adoormecidas, ainda que este último tenha sido citado na epígrafe de Memórias de minhas putas tristes e fornecido o mote a partir do qual o escritor colombiano Gabriel García Márquez pôs fim a um período de dez anos longe dos romances.
Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que  um não exite sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura  de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está  no conto de fadas  A Bela Adormecida, que não por acaso, é citado em um momento cruial da narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial.
A semelhança com a famosa fabula do escritor francês Charles Perrault fica mais explícita  na adolescente , que aqui surge dormindo, como se estivesse a espera de seu príncipe encantado. Mas ela também está presente no velho jornalista, narrador dessas memórias, que vai viver cerca de cem anos de solidão embotado e embrutecido, escrevendo crônicas e resenhas maçantes para um jornal provinciano, dando aulas de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele, e, acima de tudo, perambulando de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis.
Só quando acorda ao lado da  ainda pura ninfeta. Degaldina é que este personagem vai ganhar a humanidade  que lhe faltou enquanto fugia do amor como se estivesse atrás de si um dos generais que se revezam no poder da mítica Colômbia de  Gabriel García Márquez. O medo do amor é tão superlativo que o anti-herói dessas memórias vai preferir conviver com a mais terrível ameaça para o macho latino: o fantasma da impotência. E enquanto tivesse forças, resistiria ao poder do amor.
Parte desse medo se deve aos ridículos a que o amor nos expõe, aqui elevado à última potência em cenas como a que o ancião anda numa bicicleta cantando 'com ares de grande Caruso', ou aquela em que destrói um quarto de bordel. E por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do  nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos, como desde tempos imemoriais a arte vem tentando provar. Seja nos boleros mais sentimentais, que ressoam nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção, ou em obras-primas como esta.  "

(texto da orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez)