Colo aqui um dos textos mais bonitos que li sobre a epidemia.
Primeiro pensei que fosse medo da morte, e sim, ainda penso, é claro que era medo da morte. Um medo que surgiu num ponto ignorado de Wuhan e logo tomou conta de toda a cidade, afugentando seus habitantes e com eles se alastrando mundo afora. Não era um medo qualquer, me pareceu, tinha a sua peculiaridade. Era mais que medo: em sua expressão mais aguda veio a tornar-se uma inconformidade, uma inaceitação da finitude da vida, própria ou alheia, a rejeição mais coletiva e sumária da morte de que já se teve notícia.
Nada poderia ser mais compreensível do que isso, pude ponderar. As circunstâncias eram mesmo dramáticas, e são cada vez mais. Havia algo de indecoroso na morte a um só tempo massiva e solitária, e sempre haverá. Não faltam os que definem a humanidade justamente por essa indignação, pela repulsa que nos provoca qualquer prenúncio do fim, que dirá de um fim trágico. E, no entanto, não, nem toda a história está atravessada por essa rejeição absoluta do desconhecido, do imensurável. Foi nos últimos séculos, nas últimas décadas, nos últimos anos, que acabamos nos tornando mais hostis à certeza da finitude, que decidimos prolongar ao máximo cada vida e lamentar cada perda como inaceitável.
A literatura, mesmo em sobrevoo, talvez possa dar pistas dessa progressiva mudança de perspectiva. Por milênios os escritores mataram os seus personagens livremente, nos beligerantes épicos gregos, nas tragédias, nos romances de cavalaria. Em algumas peças de Shakespeare, chegado o desfecho, ficamos nos perguntando se terá sobrado algum personagem vivo.
E então veio o romance realista, veio Flaubert com seu rigor científico, matando sua maior protagonista em páginas numerosas e lentas. Veio Tolstói e escreveu "A morte de Ivan Ilitch", uma das mais precisas tentativas de apreender o inapreensível, de entender a morte em sua concretude, em sua vertigem. Em suas páginas intuímos que não há morte dos outros, que toda morte é sempre, em alguma medida, do outro e de si. Se sofremos ao ler Tolstói, é pela percepção perturbadora de que naquela morte se inscreve a nossa, de que na morte de Ivan Ilitch morremos todos.
Em nosso tempo a morte se fez tabu, já não conseguimos sequer falar a palavra sem que a nossa boca se consuma em morbidade. Talvez não seja disparatado propor um estudo sobre a dificuldade que hoje acomete escritores de matar os seus personagens, de condená-los ao insólito fim. Não ouço falar dessa dificuldade, apenas desconfio que exista, e a sinto em minha própria escrita. Tão grandiosa se fez entre nós a ideia da morte que as páginas dos livros já não a comportam, não conseguem acomodá-la sem convocar um princípio de revolta, e a presumível acusação de extravagância, de arbitrariedade. Já não somos capazes de contemplar em imagens ou palavras o mais comum dos acontecimentos, , humanos ou não, o mais fatal.
Primeiro pensei que fosse medo da morte, eu disse. Agora penso que não, que é medo da morte e algo mais. Se entre tantos, tão coletivamente decidimos que estas específicas mortes são inaceitáveis, e decidimos que todo empenho é válido para impedi-las, para reduzir sua ocorrência ao mínimo que toleramos, talvez não seja só por esse medo da morte que há algum tempo nos tomou de assalto. O medo é quase sempre uma experiência solitária - algum grau de solidão talvez seja sua condição primordial. Suspeito que apenas o medo não seria capaz de gerar uma reação tão comunitária.
Nesta disposição nova que temos testemunhado, nesta grande pandemia do não, pode haver exatamente o contrário do medo, tenha isso o nome que tiver. Foi pelo medo e por um equivocado instinto de defesa que se alçou ao poder, em tantos lugares, a política da brutalidade, da indiferença, da perversidade - necropolítica é o nome que alguns têm lhe dado. Se é contra essa política que tantos agora se levantam, ou melhor, que tantos agora se recostam e permanecem em casa, fazendo-se ruidosos quando a noite cai, não será por medo da morte. Será, sim, por respeito à vida, por apreço a toda esta incerteza vital em que estamos imersos, feita de som e de fúria mas também de beleza, antes que se consume a certeza do fim.