Peço licença para divulgar aqui, na integra, a transcrição da comunicação dita por Mia Couto no Seminário Internacional Guimarães Rosa, organizado pela PUC - Minas em 1998 e que foi publicado no mesmo ano em edição especial da revista Scripta. Deliciem-se com as palavra do lindo Mia Couto.
Mia couto palestrando em outro evento em 2011, mas sempre o Mia, ... |
Nas pegadas do Rosa
Mia Couto
Digo a vocês que estou aqui em pânico, mas sinto, ao mesmo tempo, muito gosto de estar aqui convosco e partilhar. Eu sou realmente um biólogo. Sempre me perguntam o que eu sou, eu nunca digo que sou escritor, porque tem um lado triste de ser escritor, por isso digo sempre que sou biólogo.Eu nasci numa pequena cidade que fica num pântano, no centro de Moçambique. A cidade era tão pequena que sonhava de fato ser cidade; havia um projeto de construir ali uma cidade bem no meio do lamaçal. E ela se sonhava sendo uma cidade europeia e, como uma cidade europeia e, como uma cidade europeia que sonhava ser, tinha um pequeno cinema. E nós, em tempos da minha infância, esperávamos pelo domingo, pela matinée de domingo, porque era o único espaço onde, naquela penumbra, daquela sala, nós escapávamos daquela realidade e saíamos daquele lugar que sonhava ser cinema. Naquele lugarzinho, aos domingos, havia um funcionário que me fascinava e que era a única presença disciplinadora naquela sala. Era o arrumador, com lanterninha, de uma sala onde se fabricava o sonho. E eu sempre perseguia uma obsessão que era aquela do arrumador do cinema. Em vez de me sentar na sala, passava para o palco, para o écran, e me arrumava para além daquela toalha luminosa, que era o lugar do sonho.E isso vai acontecer pela mão de um arrumador, que era João Guimarães Rosa. Esse encontro deu-se de uma maneira mais fortuita.Eu comecei a escrever poesia primeiro, depois fui escrever contos. Eu era jornalista. E esses contos foram os primeiros contos que eu escrevi, num primeiro livro. Chama-se Vozes anoitecidas. Contos muito marcados pelo encontro que tive com o escritor que deveria estar aqui, chamado Luandino Vieira. Foi Luandino Vieira que me fez fazer este clic, e me autorizou a fazer coisa que aprecio muito fazer. As estórias que eu queria contar não podiam ser contatadas no português normal, no português que, afinal, Moçambique adotou como língua oficial.Eu vi, mais tarde, depois de ter publicado esse livro, uma entrevista com Luandino Vieira em que ele falava que ele tinha em mim, ele tinha a partir de um escritor que nós não conhecíamos, que se chamava Guimarães Rosa. Eu fiquei alertado, avisado, e queria muito que esses livros, desse tal escritor, chegassem até mim. Eu devo dizer que não chegavam livros do Brasil em Moçambique. Nós estávamos em plena guerra e não havia troca comercial alguma, nem cultural, com o Brasil. Então eu pedi a alguém, foi uma operação bem complicada, pedi a alguém que trouxesse um livro. E quando eu li, a primeira impressão é que eu não estava ali.Quando chegou o primeiro livro, Primeiras estórias, houve um fenômeno curioso. Eu não conseguia entrar naquele texto. Era como se eu não lesse, ouvisse vozes, que eram as vozes da minha infância. Os livros de Guimarães Rosa quase me atiram para fora da escrita. E, para eu entrar naquele texto, eu tenho de fazer apelo a um verbo que não é o verbo ler, que é um outro verbo que provavelmente não tem nome. O que me tomava principalmente não era a invenção de palavras, mas havia ali uma poesia, a tal arrumação que funcionava muito como os dançarinos de Moçambique, os dançarinos da África em geral, naquele exato momento em que eles estão entrando em transe para serem possuídos pelos espíritos. Aquele flagrante daquele momento em que aquilo já não é dança, mas já é outra coisa. Era isso que acontecia naquela linguagem. Era uma linguagem, quase uma linguagem de transe, que permitia que outras linguagens tomassem posse dela. E isso era fundamental num país em que há uma amálgama, há uma ficção que se chama Moçambique. Moçambique não é uma nação ainda, é um projeto de nação, portanto é uma espécie de categoria ficcional que nós estamos inventando, numa situação em que existem vários povos com suas próprias línguas, numa situação em que 80% não tem a língua portuguesa como língua materna, em que há muita gente que não fala sequer português. Nessa circunstância é urgente que haja esse tipo de linguagem que é como a dos dançarinos a que me referi e como a linguagem que Guimarães Rosa usa e que permite essa situação de pulsão e de troca de diálogo, de cultura, para criarmos este corpo que ainda é um projeto e que é Moçambique.Eu, quando penso sobre a questão de Guimarães Rosa, de Luandino Vieira e nesse tipo de trabalho literário que estou fazendo em Moçambique, eu imagino que entre esses três casos existe uma relação que eu gostava de tocar aqui, que não é literária. Para que o escritor chegue a esse relacionamento com esse tipo de linguagem, ele tem que ser, sobretudo, não escritor em momentos da sua vida. Ele tem que escapar daquela lógica, que é a escrita enquanto sistema de pensamento. Então significa que em qualquer um desses casos - Luandino Vieira esteve preso, não sei quantos anos, 14 anos, 17 anos -, num lugar onde a palavra devia ter peso, ela se transforma numa espécie de espaço redentor de salvação. Guimarães Rosa reencontrou esse encantamento da linguagem, da fala, da anedota, do provérbio.No meu caso, em particular, digamos, eu cheguei a essa possibilidade da escrita pelo lado não-literário, pelo lado da não escrita também, pelo lado da oralidade. Eu vivo num país onde os contadores de histórias têm grande importância. Nessas zonas rurais eles são, de fato, os grandes defensores, os grandes reprodutores dessa via antiga dos valores rurais. Os contadores de histórias têm um sistema muito ritualizado de narrar, o que é cerimônia muito coplicada, com interdições: não se pode contar histórias de dia porque senão fica careca, tem que contar histórias de noite. E dos rituais, uma das normas é que o contador de histórias nunca se intitule ele próprio um criador; ele está reproduzindo a palavra divina dos antepassados.Então, no final, ele tem de fazer uma operação bem delicada que se chama o fechamento da história, ele tem que fechar a história. E ele chega ao fim da história, é como se falasse com a história, como se a história fosse uma entidade, ele vira para ela e diz : ‘Voltem para a casa, Zavane e Guama (serão o equivalente a Adão e Eva, o primeiro casal humano). E é dentro desta caixa que estão as estórias’. Então ele diz: ‘Voltem para a casa, Zavane e Guama’. Se ele faz isso, a assistência fica doente e é chamada uma doença de sonhar. E João Guimarães Rosa foi, para mim, um contador que não fechou a história e que nos deixou, pelo menos para mim, essa incurável doença e sonhar.Muito obrigado.
______________________________________________________________________
COUTO, Mia. Nas pegadas do Rosa. In: Scripta (Edição especial do Seminário Internacional Guimarães Rosa),
Belo Horizonte, v. 2, no. 3, p. 11-13, 2 sem. 1998.