sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Olhar , por Julio Cortázar

 "os olhos perdidos no fastio daquele interregno em que todo mundo parece consultar uma área da visão que não é circundante, salvo as crianças que olham fixo e em cheio para as coisas até o dia em que lhes ensinam a situar-se também nos interstícios, a olhar sem ver com aquela ignorância cortês de toda presença vizinha, de todo contato sensível, cada qual instalado em sua bolha, alinhado, entre parênteses, cuidando em manter o mínimo de espaço entre joelhos e cotovelos alheios, refugiando-se no France Soir ou em livros de bolso, embora quase sempre como Ana, uns olhos situando-se no oco entre o verdadeiramente olhável, naquela distância neutra e estúpida que ia de minha cara à do homem concentrado no Figaro." Julio Cortázar - 'Manuscrito achado num bolso'  p. 40-1

Mais fragmentos lidos por Cortázar





Acho que o trecho, traduzido, pode ser esse aqui: "Não estávamos apaixonados, fazíamos amor com um virtuosismo com um virtuosismo desligado e crítico, mas sempre caímos, depois, em terríveis silêncios. A espuma dos copos de cerveja ia ficando como estopa, amornando e contraindo-se, enquanto nos olhávamos e sentíamos que chegara o momento. A Maga acabava por levantar-se e dava inúteis voltas pelo quarto. Mais de uma vez, vi-a admirar seu corpo no espelho, segurar os seios com as mãos, como nas estatuetas sírias e passar os olhos pela sua pele numa lenta carícia. Nunca consegui resistir ao desejo de chamá-la para meu lado, sentindo-a cair pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade do seu corpo" Julio Cortázar. O Jogo da Amarelinha, p. 08-9.

Manuscrito achado num bolso


"Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo. Digo ruptura para compreender melhor (teria de compreender tantas coisas desde que comecei a jogar o jogo) aquela esperança de uma convergência que talvez me fosse dada no reflexo em uma vidraça de janela. Ultrapassar a ruptura que as pessoas não parecem observar embora sabe-se lá o que pensam essas pessoas agoniadas que sobem e descem dos vagões do metrô, o que procura além do transporte essa gente que sobe antes ou depois para descer depois ou antes, que só coincide numa zona do vagão onde tudo está decidido por antecipação sem que ninguém possa saber se sairemos juntos, se eu descerei em primeiro lugar ou esse homem magro com um rolo de papéis, se a velha de verde continuará até o fim, se esses meninos descerão agora, é claro que descerão, porque recolhem seus cadernos e suas réguas, aproximam-se rindo e brincando da porta enquanto lá no canto uma jovem se instala para demorar, para permanecer ainda por muitas estações no assento enfim livre, e aquela outra jovem é imprevisível, Ana era imprevisível, mantinha-se muito tesa contra o encosto no assento da janela, já estava lá quando subi na estação Etienne Marcel e um negro abandonou o assento em frente e a ninguém pareceu interessar e eu pude escorregar com uma vaga desculpa por entre os joelhos dos dois passageiros sentados nos assentos externos e fiquei defronte de Ana e quase em seguida, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo, procurei o perfil de Margrit no reflexo da vidraça da janela e pensei que era bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve que penteava em diagonal à testa." Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 39-40 "

"Assim foi com Paula (com Ofélia) e com tantas outras que se tinham concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, a dobra de uma revista, mais uma vez foi o poço onde a esperança se enredava com o temor numa intensa cãibra de aranhas até a morte, onde o tempo começava a latejar como um segundo coração no pulso do jogo; desde esse momento cada estação do metrô era uma trama diferente do futuro porque o jogo decidira daquela maneira; o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana à contemplação do fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo dia começara a celebrar contra tudo quanto fosse razoável, preferindo os piores desencontros às correntes estúpidas de uma casualidade cotidiana. Explicá-lo não é difícil mas jogá-lo tinha muito de combate às cegas, trêmula suspensão coloidal na qual todo itinerário erguia uma árvore de imprevisível percurso." Manuscrito achado num bolso', p. 42.

".. continuar vivendo até que, pouco a pouco, horas ou dias ou semanas , a sede de novo reclamando a possibilidade de que tudo coincidisse eventualmente, mulher e vidraça da janela, sorriso aceito ou rejeitado, conexões de trens e então finalmente sim, então o direito de aproximar-se e  dizer a primeira palavra, espessa de tempo estancado,de incacabável pilhagem no fundo do poço entre as aranhas  de cãibra. " Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p.43


"Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado" Julio Cortázar, 'Manuscrito achado num bolso', p. 46

Esse conto abre infindáveis caminhos ... amo literatura!


Boca, em "Jogo da Amarelinha"


"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno do tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha não escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha./Me olhas, de perto me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam entre si, sobrepõem-se e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de frangância obscura. E, se nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta, e eu te sinto tremular contra mim, como um lua na água." Julio Cortázar - 'O Jogo da Amarelinha", p. 28

Um trecho na voz de Cortázar:

As 'turas' de Julio Cortazar


Um trecho do romance de Cortazar:

"Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade,uma tura,a sociedade, uma tura, o amor pura tura, a beleza, tura das turas.  (...) arde-nos um fogo inventado, uma tura incandescente, um artifício da raça (...) ardemos em nossa obra, fabulosa honra mortal, alto desafio da fênix. " Julio Cortazar, "O Jogo da Amarelinha", p. 338.

Esse é o contexto do século XX, propriamente dito! Dai eu ter estudado a "escritura" de Guimarães Rosa em meu doc, mais que e isso : a presença criativa da ideia de infância (com toda sua alta tentencia a fabulação) como elemento daquela escritura. Viva Cortazar, viva Rosa, vida a literatura! <3 nbsp="" p="">

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Precisamos ouvir nossos ancestrais, por Lucas Tauil Freitas

"Metade das 6 mil línguas do mundo não são mais ensinadas às crianças. Apaga-se com cada uma delas uma faísca do espírito humano, respostas únicas à pergunta fundamental: o que significa ser humano, estar vivo e aqui?"Lucas Tauil Freitas 

Para ler o texto completo da revista Vida Simples, acesse este link.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Nicolau Sevcenko, por Elias Thomé Saliba

Meus exemplos de historiadores
Como eu disse nos agradecimentos da minha tese, Nicolau e Elias me ensinaram como ver a história sempre como se fosse a primeira vez...

NICOLAU SEVCENKO(1952-2014) para a  ANPUH

20/08/2014
Por Elias Thomé Saliba(USP)

                   “Tempo presente e tempo passado, são ambos presentes no tempo futuro”. De especial predileção de Nicolau Sevcenko, este trecho de um dos quartetos de T. S. Eliot, nos vem à memória ao refletir sobre o repentino e brutal desaparecimento do historiador, que nasceu em São Vicente(SP) em 1952. Filho de imigrantes ucranianos, perdeu o pai aos cinco anos e foi criado pela mãe, que trabalhava como tecelã e morava numa colônia de imigrantes eslavos que abrangia os bairros de Vila Alpina e Vila Zelina. Começou trabalhando precocemente com o irmão, recolhendo metais de sucatas das indústrias do ABC.
Conheci Nicolau Sevcenko em 1972, ainda quando estudante de História na USP e ele, como eu, éramos procedentes da escola pública. No curso de História o clima era meio constrangedor, com a saída de mestres importantes como Emilia Viotti e Sérgio Buarque de Holanda e com a polícia ainda circulando ao redor do campus. Época de ânimos exaltados, na qual todos achavam que você ou era um aliado incondicional ou era necessariamente um inimigo.
                Quem nos estimulou a prosseguir nos estudos foi a  nossa mestra Maria Odila da Silva Dias, que se tornou responsável pela formação de vários e importantes historiadores. Rejeitando uma concepção arcaica de História, que a concebia como fluxo evolutivo, genético ou finalista, já partilhávamos com nossa mestra muitas outras coisas, esforçando-nos por observar o passado com desprendimento, considerando toda singularidade histórica como objeto de conhecimento de igual relevância. O que nos atraía para uma visão mais libertária da história, uma história fluida, ligada aos fluxos da vida,  constantemente inventada e reinventada e distante, muito distante dos blocos graníticos das velhas ideologias.
                Em 1981, Nicolau defendeu sua tese de doutorado, em sessão histórica, que contou com a presença de Sérgio Buarque de Holanda na sua ultima aparição pública, pouco antes do seu falecimento. Ali ouvimos o professor Sérgio traduzir uma frase paradoxal de Nietzsche, que dizia: “Todos os conceitos que se congregam num processo esquivam-se à definição: só o que não tem história é definível.” Naquela época era um tanto incomum historiadores utilizarem-se preferencialmente de fontes literárias, como foi o caso de Literatura como Missão.Brincadeiras superficiais diziam tratar-se de “literatura como omissão”, sem perceber o engajamento crítico daquele trabalho que teve um enorme impacto fora da universidade, arrebatando a maioria dos prêmios no ano de sua  primeira publicação. Com olhares simultâneos - um na história social e outro na história da cultura -, Sevcenko propunha uma analise original das consciências polarizadas de Euclides da Cunha e Lima Barreto, demonstrando brilhantemente o quanto a literatura transformou-se naquele “testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.”
                     Já Orfeu Extático na Metrópole  - originalmente apresentado como livre-docência em 1993 - é um densa sondagem dos impasses da modernidade na cultura brasileira, tendo como epicentro a urbanização acelerada de São Paulo nos frementes anos de 1920.  O que impressiona neste livro é a capacidade de articulação entre a cultura internacional e a cultura brasileira. O mundo após a Ia. Guerra irradiava uma inédita forma de mobilização coletiva: em lugar da razão e da palavra, o universo imprevisível da ação que inaugurava uma curiosa espécie de cidadania fundada na emotividade. Nunca será demais lembrar que o livro é uma releitura original do modernismo brasileiro, através do seu enquadramento ambíguo neste cenário de desenraizamento e fragmentação, onde tudo convergia para repotencializar atitudes nacionalistas e mitos de mobilização coletiva.
                  Impossível falar de toda a obra de Nicolau Sevcenko e fazer justiça a sua surpreendente versatilidade sem mencionar A Revolta da Vacina.  Dedicado às centenas de mortos de Vila Socó(Cubatão), que resultaram da histórica irresponsabilidade do poder político brasileiro, o livro alcançou quatro edições em 2010 e (se é que os rankings são de alguma serventia) foi o livro mais citado naquela mesma década. Muitos dos temas desprezados ou marginalizados por outros intérpretes constituíam para Sevcenko um pretexto para  desentranhar uma história mais autentica,  como se comprova pelo volume III da História da Vida Privada no Brasil, por ele organizado e, em inúmeros outros estudos, de temas sempre surpreendentes, das raízes xamânicas das narrativas aos impactos das inovações tecnológicas na vida cotidiana.
                     Impossibilidade maior ainda é descrever a competência e a criatividade de Nicolau Sevcenko como professor, sem descontentar as centenas de historiadores que foram seus alunos ou orientandos, na PUC-SP, na UNICAMP, na USP ou em Harvard. Muitos dos seus alunos o descrevem como um daqueles professores inesquecíveis: suas classes na USP, nunca com menos do que 80 alunos, em sessões diurnas e noturnas(algo que ninguém divulga quando, nos últimos tempos, tanto se ataca a universidade pública) eram tão disputadas que já se tornara hábito colocar cadeiras no corredor para assisti-las. Afável, generoso, solícito, sempre bem-humorado, trabalhador infatigável, dificilmente conseguia dizer “não” quando solicitado – e sempre foram muitas as solicitações. Havia nele um coração de criança, que conservava sempre aquela possibilidade de se surpreender com a vida e de enxergar o passado como uma criança vê as primeiras imagens que chegam aos seus olhos. Seu desaparecimento precoce é, para nós, a perda de um amigo e do mais formidável dos nossos interlocutores intelectuais. O que é quase nada diante da perda irreparável para a historiografia e para a cultura brasileira de um dos mais brilhantes dos seus historiadores.
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Elias Thomé Saliba.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Emicida - Sol de giz de Cera



Sol de Giz de Cera

Emicida

Ela quer me contar um negócio sobre
cada pé de feijão que brotou no algodão,
não após dar cada detalhe do passeio dos caracóis.
Voa sorrindo, brinca no vento.
Eu vi que o mundo pode ser velho e novo ao mesmo tempo.
Viro rei, pirata e samurai, em resumo, no rumo, papai.
Sou eu quem mata o leão, quem vence o dragão,
ufa, enfrenta a vida dura
Dom Quixote doidão, de espada na mão
e ainda volto pra casa com a mistura, cantando:
Pa pa pa para, pa pa pa para (4x)
Menos um dente, joelho ralado e eu atrás tipo um velho,
cuidado, cuidado.
Cuidado pa pai, ó ó, vem vem, só só, vem vem, dó dó.
O cadarço deu um nó, pula como quem flutua
e fala de abelha, bala, olha a lua.
O cachorro comeu a canetinha de sua alteza,
princesa, cosquinha.
Sou eu quem mata o leão, quem vence o dragão,
ufa, enfrenta a vida dura
Dom Quixote doidão, de espada na mão
e ainda volto pra casa com a mistura, cantando:
Pa pa pa para, pa pa pa para (4x)

domingo, 10 de agosto de 2014

Leitinho - Pequeno Cidadão




Leitinho é coisa de bebê, né? Algumas vezes, na coleção de textos críticos sobre as Estórias que Rosa colecionou, aparece que aqueles textos evocam o denso 'leite humano', e com isso, na minha tese, eu destaco como referência "à primeira infância humana ou, se quisermos especificar, a seu primeiro alimento cultural que, segundo defendeu Afrânio Coutinho, consistia na cultura oral, por ele denominada de “o primeiro leite da cultura humana” (Apud SANDRONI, 2011) , que desde os primórdios vem nos alimentando com mitos, lendas, arquétipos, epopeias, elementos que, inquestionavelmente, se encontram na escritura das estórias rosianas."

Um leitinho pro nenê, um acalanto ... viva a infância na escritura rosiana! 



Referências:
RODRIGUES, Camila. 'Escrevendo a lápis de cor: Infância e história na escritura de Guimarães Rosa'. Tese de doutoramento, USP, 2014.
SANDRONI, Laura. 'De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas'. 2ª. Ed. Rio de 
Janeiro: Nova Fronteira,2011.

"Após 40 anos da morte de frei Tito, o Brasil segue torturando", por Leonardo Sakamoto

Este texto está originalmente disponível aqui. Que o Frei Tito esteja em paz, finalmente.

"Após 40 anos da morte de frei Tito, o Brasil segue torturando

Leonardo Sakamoto
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Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira. Em 1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acusados de apoiar as ações da resistência contra o regime. O calvário de Tito, da prisão ao suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta contra a ditadura.
Trago um trecho do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte de ação movida pelo Ministério Público Federal contra os torturadores:
“Na quarta feira, fui acordado às 8 horas, subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava.
Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, ou recebia cuteladas na cabeça, nos braços e no peito.
Neste ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas. (…)
Na quinta- feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas perguntas.
“Vai ter que falar, senão, só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase uma certeza.
Sentaram-me na “cadeira de dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor.
Da sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor.
Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo.
Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado.
Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.
Este blog solicitou ao também frei dominicano e membro da Comissão Pastoral da Terra no Tocantins, Xavier Plassat, última pessoa a ver Tito com vida antes do suicídio, um relato sobre as consequências da tortura sobre o religioso. Xavier lançou, neste sábado (9), durante evento que celebrou a memória de Tito na capital paulista, o livro “As próprias pedras gritarão – Escritos, ideias e poemas de Frei Tito'':
“Convivi com frei Tito na comunidade dominicana de L’Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos e eu, meus 23.
Ali, surgiu entre nós uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury [Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado em São Paulo, acusado de ser um dos principais torturadores do regime militar] que, por dentro do Tito, continuava sua tortura destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e desistência.
Resistência era quando Tito formava projetos, tocava violão, abraçava o amigo, brincava com as crianças, rezava, sorria.
Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante da voz que atormentava sua mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos ou desesperados silêncios.
Lembro como se fosse ontem: o dia era 11 de setembro de 1973. As rádios anunciavam o golpe de Pinochet. Ao chegar de longa viagem, achei Tito prostrado e gemendo ao pé de uma árvore, no estacionamento frente à portaria de La Corbusière, nosso convento.
Assim estava desde cedo. Ninguém entendia seu choramingo incessante e assustador. Sentei e fiquei ao lado, horas a fio, procurando abrigar o amigo da chuva intermitente. Pelas altas horas da noite, a duras custas, incrédulo, eu comecei a perceber do que Tito tremia e a quem implorava por piedade: era o Fleury, vociferando em (imaginário) alto-falante localizado do outro lado do vale.
Enquanto torturava um após o outro cada um dos seus irmãos, ele bradava insultos contra o Tito: “comunista, traidor, terrorista, a igreja te jogou fora, você não pisará mais neste chão sagrado, não há mais como tu escapar de mim''. Enquanto ele não se entregasse, continuaria a tortura da família por inteiro: os dez irmãos, o pai, a mãe. E Tito, o caçula, escutava soluços dos seus, entre gritos e imprecações.
Desse dia em diante, Tito pendularia entre o entregar-se e o resistir, como que acuado entre as paredes deste novo “corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo.
Cumpria-se a louca promessa que recebeu durante as sessões reais de tortura. Em suas próprias palavras, em depoimento: “Quiseram-me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara''. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia''.
Juntos, viajamos, cantamos, choramos, xingamos e desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vá.
Até que um dia (era em agosto de 1974, na semana de São Domingos), Tito resolveu livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe. Neste instante longamente preparado, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.
“Melhor morrer que perder a vida. Opção 1: corda (suicídio, Vejube). Opção 2: tortura prolongada, Bacuri”, foram umas das últimas palavras que rabiscou no papel.
Entendi assim: minha vida, ninguém tira, é minha. Eu a estou entregando. Prova de amor, maior não há.
Se os discípulos se calarem, as próprias pedras gritarão.''
O golpe e a ditadura cívico-militar ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez.
Em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. Seja através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar o marido que jaz no fundo do mar, lançado de helicóptero. Seja adotando os métodos desenvolvidos por eles para garantir a ordem e o progresso.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia das periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje.
Tito morre novamente e novamente, todos os dias, no Brasil, sob outros nomes, crenças, gênero ou cor de pele.
Como aqui já disse, que a história das mortes sob responsabilidade da ditadura, como a de frei Tito, sejam conhecidas e contadas nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente."

"É melhor morrer do que perder a vida" Frei Tito de Alencar Lima, morto há quarenta anos em decorrência das marcas de torturas durante a ditadura militar.

sábado, 9 de agosto de 2014

A menina e a velhinha ...

Gente, que lindeza esse vídeo! Me lembrei deste trecho do Rosa:

"... deixaram-no saber o que dentro daquele dito quarto se guardava. Deixaram-no ver. E, o que havia ali, era uma mulher. Era uma velha, uma velhinha - de história, de estórla - velhíssíma, a inacreditável. Tanto, tanto, que ela se encolhera, encurtara-se, pequenina como uma criança, toda enrugadinha,desbotada: não caminharia, nem ficava em pé, e quase não dava acordo de coisa nenhuma, perdida a claridade do juízo. Não sabiam mais quem ela era, tresbísavó de quem, nem de que idade, incomputada, Incalculável, vinda através de gerações, sem ninguém,só ainda da mesma nossa espécie e figura. Caso imemorial,apenas com a incerta noção de que fosse parenta deles. Ela não poderia mais ser comparada. (...) Guimarães Rosa. "Nenhum, nenhuma"


Para um menino, para a Camilinha, uma velha "velhíssima" deve ser mesmo inacreditável, tanto que a Camilinha diz : ela tem boca, mas fala?

Uma "velhinha de história, de estória" e, com a criança, fecha o circulo do da vida! Lindo!





sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Tá chegando a hora...


Já será na próxima sexta feira! Eu conto conto com a presença de todos (em pessoa ou em pensamento), pois todos vieram me acompanhando nesses cinco anos de trabalho e já agradeço de antemão!
Como trilha sonora desta última semana eu destaco a versão brasileira de "Cielito Lindo" (cantiga que Rosa escreveu no postal que enviou a Ooó de Guadalajara) temos a trilha sonora desta semana final do meu doutorado: "... ai ai ai ai, tá chegando a hora ..."



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Revista Manuscrítica divulga a defesa da minha tese



Cabe ressaltar que é defesa de uma tese na área de História que, porque faz uso de consultas a manuscritos, dialoga com a crítica genética, mas o que vale é a divulgação entre pessoas que podem de interessar pelo trabalho. Valeu Manuscrítica!