sábado, 21 de agosto de 2021

A presença da ausente Flávia: uma outra perspectiva para "O ano em que vivi de literatura", de Paulo Scott?

 


Eu sei que lá joguei a pá de cal na narrativa do Graciliano, protagonista de "O  ano em que vivi de literatura", de Paulo Scott, e foi um alivio já que o personagem é um bem desagradável. 

Mas um tema ficou em aberto, nem no post final eu sequer fiz algum comentário sobre.

É que, além de inúmeros "defeitos" o detestável Graciliano tinha uma grande ferida incurável, o abandono de Flávia, sua irmã adotiva que, sem maiores explicações aos leitores, teria abandonado a família em Porto Alegre. 

As saudades de Flávia era, durante o incômodo livro todo, os momentos mais verdadeiros. Ele, a família, todos, não aprenderam a lidar com a ausência daquela parte que lhes fora arrancada. A "vida" de Graciliano após prêmio era cheia de futilidades terríveis, mas Flávia nunca esteve ausente. Ele já não escrevia nada, mas a ela ele continuava escrevendo... criou até um perfil fake dela e ela no Facebook, então  de algum modo ele a evocava  e ela, devia estar recebendo as mensagens. 

Ou seja, Flávia estava ausente, porém era a presença mais constante na vida de Graciliano e da família.

Todos sofriam, mas ninguém mais que Graciliano , que lembrava das brigas dela e do pai e de como era difícil para todos lidar com a tal rebeldia de Flávia (segundo o que o livro nos conta, sem maiores detalhes).

Certa vez, quando Graciliano conta que fez contato com uma mulher que morou com Flávia na Europa, o pai diz  a ele uma das tantas coisas desse livro que doeram fundo em mim :

"Não adianta, Tu sempre fizeste uma leitura muito errada das coisas, E ainda hoje tu entendes as coisas de forma muito diferente da minha, Teu olhar sempre foi muito diferente, Não sei, É uma dificuldade tua de encarar a realidade, Nunca admitiu ou nunca percebeu que tua irmã é uma pessoa má, Má e egoísta, exatamente como os pais biológicos dela eram, Eu e tua mãe tentamos te proteger quando tu era um guri, mas agora tu és um homem e precisa encarar a realidade, Chega de fantasia Graciliano, Pelo amor de Deus, Cresça"(p.220)

Pouco ou nada sobre Flávia, expresso por ela mesma, ficamos sabendo no livro. Mas essa fala do pai de um filho detestável, identificando uma maldade genética na filha adotiva que, visivelmente ele nunca compreendeu, é um fantasma para todos os filhos de criação. Nesses casos a genética é como a "raça": é legitima às vezes, mas não sempre... 

Sei que não faz parte do projeto literário de Scott, por isso nunca vai acontecer, mas confesso  que adoraria ler uma continuação do romance, só que desta vez a partir do ponto de vista misterioso de Flávia, a estranha, a diferente, a amaldiçoada pela herança genética e, sobretudo, nada parecida com eles. 

É foda!