Em relação ao passado e à história experimentamos frequentemente duas atitudes diversas: aquela espécie de curiosidade intelectual, que nos leva a perguntar “como realmente ocorreram as coisas” ou uma inquietação nostálgica, que nos leva a acreditar que, como dizia Goethe, “o melhor da história é o entusiasmo que ela inspira”. A obra do historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) é destinada tanto àqueles leitores com inquietações intelectuais quanto aos nostálgicos pelo passado, ansiosos por reencontrar ou evocar suas próprias experiências intelectuais e afetivas. 
Arthur Friedenreich, filho de imigrante alemão com uma ex-escrava, foi o maior artilheiro futebolístico brasileiro no ano de 1920. Naquele mesmo ano, Edu Chaves venceu o maior desafio aéreo sul-americano, percorrendo pela primeira vez a rota Buenos Aires-Rio de Janeiro num avião pintado com as cores da bandeira paulista. Qual a relação desses dois eventos esportivos com a história brasileira no início do século XX?  
A revolução tecnológica, o crescimento explosivo das grandes metrópoles e as alterações no comportamento coletivo após a Primeira Guerra Mundial criaram um novo cenário para esses, os novos heróis. Não mais as celebridades da palavra e do pensamento reflexivo como Rui Barbosa ou o Barão do Rio Branco mas, sim, as estrelas da energia física, do esporte competitivo, do movimento e da velocidade. 
Revelando uma original capacidade de articulação entre a cultura internacional e a brasileira, esta é uma, entre muitas, das mais importantes e originais contribuições de Sevcenko para a cultura brasileira, no livro Orfeu Extático na Metrópole, de 1982. 
O fluxo intenso de mudanças em escala mundial, que se concentrou de fins do século XIX até meados do século XX, envolveu, de forma completa e rápida, todas as pessoas, alterando dramaticamente seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até mesmo seus reflexos instintivos. 
O mundo, após a Primeira Guerra (1914-1918), gerou uma inédita forma de mobilização coletiva: em lugar da razão e da palavra, o universo imprevisível da ação que inaugurava uma curiosa espécie de cidadania fundada na emotividade. 
Músico prodigioso e sedutor, Orfeu, na mitologia grega, era louvado como celebrante dos rituais de exaltação e êxtase coletivo. Como historiador de rara sensibilidade, Sevcenko serve-se da metáfora de Orfeu como inspiração para traçar um vigoroso painel da história brasileira nos anos 1920. 
Do balé ao jazz, do cubismo ao futurismo, dos mitos fascistas à patafísica de Alfred Jarry, o historiador consegue captar com surpreendente versatilidade a forma como os registros literários e artísticos sintonizavam essa fragmentação e esse desenraizamento generalizados. 
No final do livro, a narrativa retorna à cena urbana paulista, desdobrando-se em três acontecimentos, nos quais se exercitaram aquela mobilização e ritualização coletivas: 1922, a cena dos mártires na Revolta do Forte de Copacabana; 1924, quando São Paulo, a bela capital cosmopolita, foi bombardeada após a invasão das tropas federais; e 1930, quando Getúlio Vargas vem a São Paulo e foi (surpreendentemente para o próprio Vargas) saudado por uma imensa multidão. 
O historiador já trilhava aí a senda aberta pelo seu primeiro livro, Literatura como Missão, de 1983, um estudo pioneiro, no qual se dedica a rever a história cultural brasileira a partir das obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Pioneiro na abordagem, porque a criação literária não mais é vista como mero reflexo mecânico da história, mas como um conjunto vivo de práticas e eventos. A literatura revela todo o seu potencial como documento, não apenas pelas referências esporádicas a episódios históricos ou pela beleza de suas criações estilísticas, mas como um universo complexo que incorpora a história em todos os seus aspectos. 
Com olhares simultâneos – um na história social e outro na história da cultura –, Nicolau Sevcenko acaba desvelando o quanto a literatura da época transformou-se naquele “testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos”. 
Rejeitando a concepção tradicional de História, que a concebe como fluxo evolutivo, genético ou finalista, a abordagem de Sevcenko consistiu no esforço de olhar a realidade com desprendimento, considerando toda singularidade histórica como objeto de conhecimento de igual relevância. É o que notamos no livro A Revolta da Vacina: Mentes insanas em corpos rebeldes, cuja primeira edição é de 1983, uma das primeiras e mais sólidas reconstruções desse capítulo pouco conhecido da história brasileira. O que não impediu o historiador de realizar uma interpretação engajada e crítica: a República brasileira pretendeu inaugurar uma sociedade liberal e democrática, mas acabou não só excluindo a maioria da população, como tratando-a com desmedida violência. Ou, na frase definitiva de Lima Barreto, a “república apenas democratizou a senzala”. 
Já o livro A Corrida para o Século XXI catalisa os temas mais caros da obra do historiador: a avaliação dos custos irredimíveis da modernidade ao provocar o esgarçamento da solidariedade e anular as energias críticas do indivíduo. A aceleração da vida, que Sevcenko compara ao loop de uma montanha-russa, altera radicalmente o quadro de valores da sociedade. 
Publicado em 2001, o livro ainda conserva uma estranha atualidade, pois antecipa os imperceptíveis efeitos da comunicação digital. Nas grandes metrópoles, todos vieram de algum lugar, portanto, ninguém conhece ninguém, são tantos e estão tão ocupados que a forma prática de conhecer os outros é pela maneira com que se vestem, pelos objetos simbólicos que exibem, pelo seu comportamento. A comunicação básica entre as pessoas é toda ela externa e baseada em símbolos exteriores. Como esses códigos mudam com extrema rapidez, ingressamos, sem o saber, no efêmero império das modas. Toda a comunicação humana não se concentra mais nas qualidades humanas da pessoa, mas nas mercadorias que ela ostenta ou nos objetos que possui.
Irrepreensível na pesquisa e elegante no estilo, toda a obra de Nicolau Sevcenko, tristemente inconclusa em face do seu precoce desaparecimento, é um diálogo com a nossa razão e com os nossos sentimentos. Como sabem as centenas de alunos de seus cursos e palestras, ele sempre atraiu e sempre atrairá muitos leitores porque conseguiu o raro feito de captar aquele ponto da vida humana, onde se cruzam experiências vividas com expectativas de experiências futuras. Aquela encruzilhada da vida que constitui o maior prêmio à nossa memória e na qual passado e presente se projetam no futuro. Ou, como dizia T.S. Eliot, aquela esquina quase desconhecida, onde “tempo presente e tempo passado são ambos presentes no tempo futuro”.