sábado, 9 de julho de 2011

A ESCRIVANINHA

O médico achou que eu era míope. E me prescreveu não só óculos, mas também uma escrivaninha. Era engenhosamente construída. Podia se deslocar o assento de modo que ficasse mais próximo ou mais afastado da prancha inclinada, onde se escrevia. Além disso, havia uma trave horizontal no espaldar, que dava apoio às costas, sem falar de um pequeno suporte de livro removível e que coroava o conjunto. Essa escrivaninha junto à janela logo se tornou meu recanto favorito. O pequeno armário oculto sob o assento continha não só os livros de que eu precisava na escola, mas também o álbum de selos e outros três ocupados pelos cartões-postais. E no gancho firme da lateral da escrivaninha ficavam pendurados, ao lado da madeira, não só minha pasta, mas também o sabre do uniforme de hussardo e o tambor de herborista. Frequentemente, ao voltar da escola, a primeira coisa que eu fazia era festejar meu reencontro com a escrivaninha, ao mesmo tempo em que já a transformava no palco de uma de minhas ocupações prediletas – a decalcomania, por exemplo. Num instante, no lugar antes tomado pelo tinteiro, surgia uma xícara de água morna, e eu começava a recortar as figuras. Quanto me prometia o véu atrás do qual me fitavam das folhas dobradas e dos cadernos! O sapateiro inclinado sobre as encóspias e as crianças sentadas nos galhos da árvore colhendo maçãs, o leiteiro diante da porta com a soleira coberta de neve, o tigre que se dobra para saltar sobre o caçador, cuja espingarda acaba de detonar, o pescador na relva diante de um riacho azul e a classe atenta ao professor que ensina algo no quadro-negro, o farmacêutico à entrada de sua loja bem sortida e cheia de cores, o farol com o veleiro em frente – tudo isso era coberto por um sopro de névoa. Porém, quando, suavemente iluminadas, repousavam na folha de papel; quando a grossa capa saía em rolinhos delgados sob a ponta de meus dedos que, cautelosamente, girando, esfregavam e raspavam seu reverso;quando, por fim, a cor despontava, doce e íntegra, do reverso fendido e esfolado, era como se irrompesse sobre a turva manhã de um mundo descolorido o sol radiante de setembro, e todas as coisas, ainda umedecidas pelo orvalho que refrescava no crepúsculo, ardessem agora com a chegada de um novo dia da Criação. Embora, afinal, eu me fartasse também daquele passatempo, era assim que sempre encontrava um pretexto de adiar os deveres de casa. Era com prazer que revia velhos cadernos, dotados agora de um valor especial, que era o de eu tê-los resgatado do domínio do professor, que teria direito sobre eles. Agora deixava o olhar recair sobre as correções ali registradas em tinta vermelha, e um prazer sereno me tomava. Pois, assim como os nomes dos mortos gravados nas sepulturas já não podem ser úteis ou prejudiciais, ali estavam notas que haviam entregado todo seu poder a outras mais antigas. Com outro espírito e com a consciência mais tranquila eu podia perder horas na escrivaninha tratando dos cadernos e dos livros escolares. Os livros exigiam capa feita de papelão azul, e quanto aos cadernos, o regulamento insistia que a cada um se juntasse o respectivo mata-borrão de forma que este não se perdesse. Para esse fim havia pequenos cordéis que se vendiam em todas as cores. Prendiam-se esses cordõezinhos na capa de cada caderno e no mata-borrão por meio de obreiras. Se quiséssemos obter uma riqueza cromática, poderíamos forjar arranjos variados, dos mais sóbrios aos mais vistosos. Assim, aquela escrivaninha guardava, sem dúvida, certa semelhança ao banco escolar, mas sua vantagem era que nela eu ficava protegido e dispunha de espaço para esconder coisas de que ele não devia saber. A escrivaninha e eu éramos solidários frente a ele. E mal me havia recuperado após um aborrecido dia de aula, ela já me cedia novo vigor. Eu podia me sentir não só em casa, mas também numa cela como a daqueles clérigos que se veem nas iluminiras medievais, ora em seu genuflexório, ora em sua mesa de trabalho, como se estivessem dentro de uma couraça. Nesta cela comecei a ler Dédito e crédito, Duas cidades. Buscava a hora mais calma do dia e esse lugar, o mais isolado de todos. Então, ao abrir a primeira página, sentia-me tão solene como quem pisa num novo continente. De fato, tratava-se de um novo continente, no qual a Criméia e o Cairo, a Babilônia e Bagdá, o Alasca e Taschkent, Delfos e Detróit, se comprimiam uns sobre os outros tão compactamente como as medalhas douradas das caixas de charuto de minha coleção. Nada mais reconfortante do que permanecer assim cercado por todos os instrumentos de minha tortura – vocabulários, compassos, dicionários – num lugar onde de nada valiam suas reivindicações.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II- Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense.1995.Pp.118-120