segunda-feira, 25 de outubro de 2021

"Antes do baile verde", de Lygia Fagundes Telles e meu amadurecimento como leitora

Edição Cia das Letras 2009. Capa detalhe de
 "O menino com tambor", de Beatriz Milhazes


Durante todo o tempo em que li esse livro, outubro qyase inteiro, ao mesmo tempo em que me espantava com a qualidade literária da obra, estranhava como eu pude ter lido, muito nova, alguns desses contos, que hoje mal me lembrava, ou que tinham deixado algumas marcas, mas o certo é que eu não abarco tudo o que Lygia me ofereceu hoje, mas quando mais nova nem arranhava. Vou fazer um breve comentário sobre minha leitura dos 18 contos assim, no calor da hora. Como é  um livro muito famoso, cai em vestibular, um clássico, aviso logo que não vou conter spoiler, se rolar, rolou.
 

1 Os Objetos - Uma ótima introdução ao ambiente da maioria dos contos: um momento do cotidiano de um casal em crise, com um deles com problemas de saúde, conversam sobre relações sentimentais. Um belo trecho é quando Miguel, desconfiando que Lorena está com ele por pena, tenta explicar seu posicionamento:

"Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam.(...)Veja, Lorena, veja… Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio." (p.12/13)

 Como é comum nos contos lygianos, a narrativa é um destaque de uma história maior (a impressão é que poderiam ser parte de um romance, ou não ...), e os finais ficam em aberto, o mais incrível é como ela, mesmo assim, constrói personagens conta uma história que mexe com a gente.  

2 Verde Lagarto Amarelo - É um dos contos que eu já conhecia e amava. No conflito velado e lambuzado de amor, recordações e ressentimento, entre os irmãos  Rodolfo e Eduardo, é bem desagradável se identificar com Rodolfo, mas é também inevitável. Tantas outras vezes no livro isso acontece: não é uma leitura para fracos. Um trecho lindo é quando Rodolfo, o escritor, pondera:

"—Já é tempo de uvas?—perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto" (p.20)

3 Apenas um Saxofone - É um dos conto bem fechado em si mesmo (depois tem piores), precisei ler mais de uma vez, porque ainda queria entender a narrativa, com o tempo fui aprendendo a ouvir a dicção de Lygia, mais vale apreender o que primeiro chama a atenção, porque o mais importante não é dito, às vezes nem mostrado! Essa prostituta,  apelidada Luisiana (berço do jazz) por seu antigo amante Xenofonte, o moço que era jazzista e tocava saxofone, do qual ela sentia tanta falta... mas onde estaria ele?

4 Helga  Desse todo mundo gosta, porque tem um narrador auto crítico, quase um Rodrigo S.M. da Clarice, e engana a gente com uma base histórica, fala de um descendente de alemães que cresceu passando férias com a juventude nazista, mas isso, claro, não é o mais importante, eu gostei, achei um bom conto, envolvente, mas tem melhores no livro.

5 O Moço do Saxofone - Esse, sim, é um baita conto. Novamente a imagem fálica do saxofone.  No meio das coisas bizarras que se conta (pra nos distrair), há a voz de um som, a música, que o tempo todo está competindo a narração com o narrador, fazendo acontecer outro enredo dentro da trama. CARAMBA: ISSO É UM CONTO! É certo que os contos desse livro têm algumas constantes (tipo o verde sempre aparece, menos nesse), e já é a segunda vez, até agora, que Lygia nos faz ouvir o som de saxofone, mas nesse conto, esse som, talvez mais do que o saxofonista do título, é o ponto chave do conto. Lygia é a escritora da sugestão!

6 Antes do Baile Verde Esse eu li muitas vezes na vida, amo de paixão. Na trama entre  a "jovem" Tatisa e sua empregada, a "mulher" Lu é genialmente construída para nos angustiar, a insistência de Lu em abrir os olhos de Tatisa para o fato de que seu pai estava morrendo, a negação incessante da moça, toda representada pelas lantejoulas da fantasia, que não se prendem. Quando Tatisa enfim fecha a porta contra a dura realidade e vai ao baile, deixa cair algumas lantejoulas verdes da sua fantasia, como se a seguissem, como se perguntassem mais uma vez se ela tem certeza de que vai mesmo... Mas ela vai. Que decisão difícil entre a morte e a vida. Eu tenho me acostumado a ouvir o questionamento das lantejoulas, não me arrependo, mas como me esgota. Isso é fato.

7 A Caçada - Um dos contos que mais me impactou, sem dúvidas. Esse eu não conhecia, mas cara, o que é aquilo? A história de um homem que se sente arrebatado por uma tapeçaria que retrata uma caça num antiquário, que admira, observa ,se reconhece participando na  cena, sofre com ela, se pergunta qual papel é a ele destinado ali ... Assim como é com um leitor passional como eu, se eu não embarco no livro, não me vale a leitura.

Tapeçaria representando o conto aqui


8 A Chave - Um conto ótimo, a gente vai pela cabeça de Tom, o senhor que não está mais conseguindo acompanhar a jovialidade de sua esposa. O personagem  "velho"  diz  insistentemente a esposa mais jovem que se prepara para sair,  que precisa dormir, dormir, dormir... Chega a sonhar:

"Se pudesse dormir ao menos aquela noite, enfiar-se na cama com uma botija, uma delícia de botija, criando assim aquela atmosfera terna entre seu corpo e as cobertas... Ô! A melhor coisa do mundo era mesmo dormir, afundar com uma âncora na escuridão, afundar até ser a proporia escuridão, mais nada." 

Nunca me identifiquei tanto!

9 Meia-Noite em Xangai - Outro conto bem fechado, embora o narrativa esteja bem clara para nós, a cantora de ópera possivelmente inglesa, tem brilhado em suas apresentações em Xangai. A tensão se dá entre ela, seu mimado cachorrinho Ming e seu empregado de quarto Wang. Ela o maltrata e menospreza sem dó, como se ele não fosse capaz de entender o que ela fala (como os escravos nos romances do Machado, eles estão, mas é  como se não estivessem ). Mas ele  entende. O fim não sabemos. 

10 A Janela -Uma história bizarra, a gente supõe as coisas. Uma mulher, possivelmente uma prostituta, recebe e seu quarto um homem que só deseja ver sua janela na qual teria morrido o seu filho. Ela o trata bem, percebe que não vai lhe fazer mal, até que chegam os enfermeiros com a camisa de força e o levam embora. Sua desolação ao final é tocante.

11 Um Chá Bem Forte e Três Xícaras- Um dos contos mais bonitos do livro. Como uma rainha, Maria Camila aguarda as 17 horas para o chá que marcou com uma visitante. Em cia da empregada Matilde, conversam sobre a convidada, jovem estagiária de seu marido Augusto, que Matilde conhece porque é ela às vezes telefona para ele. Maria Camila, na iminência de receber uma concorrente ao seu posto,  passa todo o tempo observando a natureza no meio da tarde - hora em que "tudo vai ficando rosado" -, procurando não perder sua majestade, em trechos sublimes como este: 

"Maria Camila voltou-se para a janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim. No céu azul-claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar." (p. 99-100)

Na verdade ela sabia que estava prestes a entrar numa briga que poderia ser feroz, não sabia bem o que fazer, dirigindo-se às rosas ,  intimamente,  suplicava:

 "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!…” Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga!…”(p.103)

Nem a rosa, nem Augusto lhe responderam nada, ela então percebe que vai ter que lutar com suas próprias armas, sozinha:

 "Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: — Acho a vida tão maravilhosa!(...) 

— Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.

— Mas se é só a senhora e ela… 

— O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça — acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. — Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos." (p.104)

Que personagem! Quando, ao final, ela ouve passos na calçada, "levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão" (p.104). Em seu reino, nada deveria temer!

12 O Jardim Selvagem - Uma história de suspense. A jovem Ducha narra a história do tio Ed e da Tia Daniela, sua esposa diferentona, que nadava nua, sabia atirar  e nunca tirava a luva da mão direita. Conto divertido.

13 Natal na Barca -É um dos contos que eu já conhecia. Muito triste e bonito... um tanto onírico, muitas tragédias sendo contadas calmamente, na força da fé na noite de Natal.

14 A Ceia - Conto impactante. Em seu desespero de mulher trocada por outra, Alice insistia em reencontrar  Eduardo, seu ex, sempre jurando que "desta vez" não vai fazer escândalo. Mas é mais forte do que ela. Que pena, gostaria de abraçá-la. E ele também, que pagou a conta, disponibilizou o táxi quando ela preferiu ficar sozinha:  como lidar com uma situação tão constrangedora? No fim, restou a  ela o isqueiro de Eduardo  e suas belas chamas!

15 Venha Ver o Pôr do Sol - Um dos contos mais famosos da Lygia, outra narrativa de suspense e mistério, bem mórbida, narra a história de Ricardo, que convida sua ex Raquel, para um último encontro de despedida, no qual poderão apreciar o mais belo por do sol da cidade. Como é uma trama de vingança, na verdade ele deseja atraí-la para um cemitério abandonado pelos vivos e pelos mortos, para trancafiá-la numa masmorra. Muito influenciado pelo fantástico "Um barril de Amontilhado", de Poe, mas com um triste traço brasileiro : a assassinada é uma mulher! 

16 Eu Era Mudo e Só - Achei um conto difícil de ler,  a história de Manuel e sua esposa exemplar e rica Fernanda  e da filha Gisela, que é toda narrada a partir dos pensamentos de Manuel. A família ideal, a mulher que ele ama, mas que o deixa deslocado. Quando ele cita o verso "eu era mudo e só na rocha de granito", do poeta português Guerra Junqueira, para explicar como se sente,  Fernanda o repreende dizendo que aquele poema era uma coisa ridícula. Restou a Manuel imaginar como seria lindo se transformasse sua bela família em um postal, não precisando conviver com ela!  

17 As Pérolas - Após o incômodo (ao ponto de mal conseguir ler com atenção) "Eu era mudo e só", achei as pérolas mais bonito, gostei das imagens: As pérolas "rosadas e falsas" de Lavínia (cujo "entrechocar das contas produzia um som semelhante a uma risada", a varanda, o "Chopin de bairro", a lembrança da mãe de "olhos poderosos", que sempre já sabia de tudo e o ciúme doentio de Tomás, que justifica o clima de falsificação da trama (nossa única certeza está nas coisas assumidamente falsas, o resto pode ser suposição de uma mente ciumenta. Sim, há fortes referências ao Dom Casmurro, embora para mim Lygia seja mais palatável, então eu só posso aplaudir mais uma vez nossa grande Dama Lygia.

18 O Menino - Um belo conto sobre o amadurecimento do menino, que na ida ao cinema com a idealizada mãe, realiza o cenário de traição em que sua família vive. Dói muito crescer e para ele não foi diferente. Belo final de um livro incrível, que marcou meu crescimento como leitora! obrigada Lygia!