domingo, 2 de junho de 2019

"A gente combinamos de não morrer" , por Conceição Evaristo

Desde o ano passado, conhecemos o nome de Conceição Evaristo por causa da fala a ela atribuída "Eles combinaram de nós matar, mas nós combinamos de não morrer" e essa foi a voz de reação dos negros ao cenário infernal que se montado no Brasil de 2019. 
Porque a citação é MUITO BOA, acabei usando sempre sem conferir se era fato ou fake. É fato, é uma síntese do livro Olho Dágua (clique aqui para ler em PDF) , especialmente  do conto "A gente combinamos de não morrer"  deste livro.  
Capa do livro de Conceição Evaristo

Pois ontem eu. muito antiquada, imprimi e li com atenção o conto "A gente combinamos de não morrer" e,claro, ele não saiu de mim.
O conto tem aquele movimento do século XX, meio Saramago, no qual a "voz de fala" muda a todo o momento e o que importa é o manter o fluxo da FALA. Sim, estamos falando de oralidade, por isso que é verdade que Conceição Evaristo escreveu aquela frase, mas não como foi divulgado, pois no seu conto não é "nós combinamos de não morrer", e sim "a gente combinamos de não morrer" . Essa diferença, para uma especialista na literatura de Guimarães Rosa, é fundamental.
Mas esse combinado, um " juramento feito em voz uníssona, GRITADO SOB O PIPOCAR DOS TIROS " (como não lembrar dos 200 tiros disparados e 80 acertados no carro da família que só tinha como "crime" ser negra?), pelos meninos do morro, as mães etc... todos os que, sem dúvida, TINHAM COMBINADO DE NÃO MORRER, ainda que morressem, e sabiam que iam morrer e não demoraria, pois sempre foram, são e serão vidas não permitidas de serem vividas. Balanço mais sintético a respeito da situação do negro brasileiro, é muito difícil encontrar
Para sair do título fortíssimo e revisitar o texto, que trata da realidade de pobres negros envolvidos com tráfico de drogas (a tal da nova senzala, saca?), escolhi este trecho ,que não sai da minha memória:
"Dorvi respirou e aspirou fundo. Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para pôr na bunda de neném.Pois é, meu filho nasceu. Um pingo de gente. Quando Bica me mostrou, nem tive coragem de olhar direito. Pequeno,tão pequeno! Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho.Quis cutucar o putinho com a ponta de minha escopeta.Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo."
Não tinha porque ter medo, afinal já tinham jurado e combinado de não morrer, né? E estavam procriando, mesmo achando que o melhor seria ter deixado ele no útero, ou nem mesmo ter saído "de dentro do caralho", porque vivo, teria que combinar de não morrer, mesmo que tenham combinado de matá-lo e faz tempo.
Sem medo, portanto, recomendo vivamente a leitura de Conceição Evaristo!