segunda-feira, 1 de junho de 2015

Walter Benjamin e a infância rememorada


Como sabem e eu já tinha postado aqui, eu adoro as traduções de Benjamin de João Barrento, publicadas no Brasil pela editora Autêntica em volumes como este. Abaixo apresento um  aperitivo delicioso, onde adentramos aquele espaço cambiante das rememorações de infância de Benjamin e provamos o gosto agridoce, porém finalmente feliz, da lógica infantil :   
"BLUMESHOF 12
(95)"Não havia campainha com som mais agradável. Passado o limiar daquela casa, sentia-me mais protegido e aconchegado do que na dos meus pais. Aliás, o nome da rua não era “Blumes Hof”, mas Blume-zof’[1], /(96) e a casa era gigantesca flor de pelúcia que assim se abria como se saísse de um invólucro amarrotado. No seu interior estava sentada a avó, a mãe da minha mãe. Era viúva. Quem visitasse a velha senhora, na sua janela de sacada, atapetada, guarnecida de uma pequena balaustrada e dando para o pátio, dificilmente  poderia imaginá-la nas grande viagens marítimas ou mesmo em excursões ao deserto, que de tempos em tempos fazia,  através da agência de viagens “Stangens Reisendisi,”. De todas as casas de luxo que eu visitava, essa era a única com um  toque de grande mundo. Madonna di Campiglio e Brindisi, Westrland e Atenas e todos os outros  lugares de onde mandava postais  ilustrados – em todos eles a base das imagens ou se acastelava em nuvens no céu  mostrava-os de de tal maneira habitado por minha avó que ele se transformavam em colônias de Blumeshof. Quando , depois, a terra natal a a recebia de novo, eu pisava as tábuas do seu assoalho com tanto respeito que parecia que elas tinham dançado com sua dona nas ondas do Bósforo, e que  nos tapetes persa se escondia ainda a poeira de Samarcanda.
Que palavras poderão descrever o sentimento imemorial de segurança burguesa que irradiava dessa casa? O recheio dos meus muitos quartos não honraria hoje um ferro-velho. É que, embora os produtos dos anos setenta fossem muito mais sólidos do que os que vieram depois com a Arte-Nova[2], o seu toque  inconfundível estava na complacência com que abandonava as coisas ao correr do tempo e, quanto ao seu futuro, no modo como apenas confiavam na resistência do material e nunca em princípio de funcionalidade. Aqui, dominava  um tipo de móveis que, devido à persistência com qua acumulavam ornamentos de muitos séculos, respiravam confiança e durabilidade. A miséria não podia ter lugar nessas salas, por onde nem sequer a morte passava. Nelas , a morte não estava prevista. Por isso pareciam tão confortáveis de dia, e à noite transformavam-se em cenários de maus sonhos. A caixa da escada, quando entrava nela, surgia-me como lugar de um pesadelo que me fazia ficar de pernas pesadas e sem força, para finalmente me dominar por completo quando apenas alguns passos me separavam da almejada soleira. Tais sonhos eram o preço que  eu tinha de pagar pelo aconchego./
(97) A avó não morreu em Blumeshof. Na casa em frente morou durante muito tempo a mãe de meu pai, que era mais velha. Também ela não morreu ai. Assim a rua se me tornou uma espécie de Elísio,um reino de sombras de avós imortais, mas afinal desaparecidas. E como a fantasia, uma vez lançado o seu véu sobre a região, gosta que as suas margens se deixem enredar em estranhos caprichos, ela fez de uma mercearia próxima um monumento ao meu avô, que era comerciante, só porque o dono se chamava também Georg. O retrato de meio-corpo desse homem precocemente falecido cobria, em tamanho natural e fazendo par com o da mulher, a parede do corredor que levava às zonas mais recatadas da casa. As ocasiões mais diversas serviam para animá-las. A visita de uma filha casada fazia abrir uma sala com guarda-roupas há muito fora de uso; um outro quarto dos fundos recebia-me quando os adultos dormiam a sesta; de um terceiro vinha o matraquear da máquina de costura nos dias em que a modista ia na casa. A mais importante dessas divisões das traseiras era para mim a loggia, ou porque, por estar mais modestamente mobiliada, não era muito apreciada pelos adultos, ou porque aí chegava, abafado, o ruído da rua, ou então porque ela me permitia  ver os outros pátios, com os seus porteiros, as crianças e os homens do realejo. Aliás, eram mais vozes que figuras o que se distinguia dessa varanda.  O bairro era fino, e nos seus pátios nunca havia muita alfazema; alguma coisa da serenidade dos ricos, para quem o trabalho aí era feito, tinha passado para eles, e em toda semana havia alguma coisa de domingo. Por isso o domingo era o dia da loggia . O domingo de que os outros quartos, que eram como que defeituosos, nunca se apercebiam, porque ele passava por eles e escoava-se- só a  loggia, que dava para o pátio com as armações de bater os tapetes e as outras varandas, o apreendia, e nenhuma das vibrações do repicar dos sinos vindas das igrejas dos Doze Apóstolos de S. Mateus dela se desprendia, ficando, pelo contrário, aí acumuladas até a noite.   
Os quartos dessa casa não eram apenas muitos, alguns deles eram também muito espaçosos. Para dar um bom-dia à avó na sua varanda, onde, ao lado da caixa de costura, ela tinha sempre ou fruta ou chocolates, eu tinha de atravessar  a enorme sala de jantar e a sala que dava para a varanda. Só no dia de Natal se via para que serviam aquelas salas. As longas mesas onde eram colocados os presentes estavam repletas, porque eram muitos os que os iam receber.[cr1]  Os lugares estavam muito (98) apertados, e não havia a garantia  de não  perder o lugar  quando à tarde, depois de terminada a refeição principal, era preciso pôr mais um lugar para um velho criado ou para o filho do porteiro.Mas essa ainda não era a grande dificuldade do dia;  essa chegava no princípio, quando  se abria a porta  de  dois batentes . Ao fundo da grande sala refulgia a árvore. Nas grandes  mesas  não havia um espaço livre, sem ter pelo menos um prato colorido com marzipã e ramos de abeto a chamar por nós; e  muitos deles acenavam brinquedos e livros. O melhor era não lhes dar demasiada atenção.  Eu poderia ter estragado o meu dia se me fixasse  precipitadamente  em  presentes que depois teriam noutros seu legítimo proprietário. Para fugir a isso, ficava especado na soleira, com um sorriso nos lábios; e ninguém seria capaz de dizer se ele era suscitado  pelo brilho da árvore ou pelo dos presentes que me estavam destinados e dos quais eu, completamente fascinado, não ousava aproximar-me. Mas por fim acabava  por ser uma  terceira coisa que determinava meu comportamento, mais profunda do que minhas pretensas ou autênticas razões. De fato,  por enquanto os presentes pertenciam ainda mais a quem os dava do que a mim.  Eram frágeis e eu tinha medo  de lhes tocar desajeitadamente à vista de todos. Só lá fora, no vestíbulo, onde a criada as embrulhava e fazia  desaparecer  em trouxas e caixas, deixando-nos o seu peso como caução, nós estávamos seguros das nossas novas posses.
Isso só acontecia muitas horas depois. Quando então, com as coisas bem embrulhadas e atadas debaixo do braço, saímos para o lusco-fusco, a tipoia nos esperava à porta da casa e a neve repousava intacta sobre as cornijas e vedações, mais suja no pavimento, se ouvia o tilintar de um trenó do lado da Lützowufer, e os candeeiros a gás, acendendo-se um após o outro, denunciavam o caminho do funcionário que os ascendia e que até nessa noite  dos doces tinha de pôr  a vara ao ombro – então, a cidade ficava tão mergulhada em si  mesma quanto um saco cheio de mim e da minha felicidade.  "
 BENJAMIN, Walter. "BLUMESHOF 12". In: Rua de mão única e Infância berlinense:1900. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 95-8. (Notas da edição brasileira e grifos meus)
[1] A primeira leitura, Blumes-hof, significaria “Pátio de Flores”, e corresponde ao verdadeiro nome da rua; a segunda, Blume-Zof(e), é uma corruptela com o significado de “Dama da Flor”, mais condizente coma imagem da avó que é dada a seguir.
[2] Jugendstill, verso alemão do estilo Art Nouveau.