sábado, 6 de dezembro de 2014

A viagem no tempo de Lélio, que viu a molha na velhinha ...

Corpo de Bale e de temporalidades ... aqui a viagem do tempo de Lélio, coisa muito linda:
"(...) A chã, por onde ia, descambava; Lélio pensou 'Daqui vou dar numa vereda..."
Andou embebendo tempo.
E vai, a solto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça se encurvava, por pegar uma coisa no chão. Uma mocinha. Ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o PANO VERDE NA CABEÇA, E - só a voz - baixinho ao natural, como se estivesso conversando sozinha, num simples de delicadeza  : - '... goiabeira, lenha bôa: queima mesmo verde, mal cortada da árvore...' - mas a voz diferente de mil, salteando co uma força de sossego. Era um estado - sem surpresa, sem repente - durou como um rio vai passando. (...)  Lélio não se sentia, achou que estava ouvindo ainda um segredo, parece que ela perguntava, naquele tom requieto, que lembrava um mimo, um nino, ou um muito antigo continuar, ou o a-pio de pomba-rola em beira de ninho pronto feito: - 'Você é arte-mágico?...Viu riso, brilho, uns olhos - que tivessem de chorar, de alegria,só era que podiam... -; e mais ele mesmo nunca ia saber, nem recordar ao vivo exato aquele vazio de momento .(...) E era nela que seus olhos estavam.
Mas ela era uma velhinha! Uma velha ... Uma senhora." A Estória de Lélio e Lina – João Guimarães Rosa .  


Para dar significado para uma longa vida inteira o escritor tem que ser maior, como Rosa - o que escrevia para 700 anose há 35 anos fazendo viver, apesar de "toda a coisa ruim que acontece acontecendo" :

"E então Migulim saíu. Foi ao fundo da horta, onde tinha um brinquedo de rodinha-d'água - sentou o pé, reventou. Foi no cajueiro, onde estavam pendurados os alçapões de pegar passarinhos, e quebrou todos. Depois veio, ajuntou os brinquedos que tinha, todas as coisas guardadas - os tentos de olho-de-boi e maria-preta, pedra de cristal preto uma carretilha de cisterna, um besouro verde com chifres, outro grande, dourado, uma folha de mica tigrada, a garrafinha vazia, o couro de cobra-pinima, a caixinha de madeira de cedro, a tesourinha quebrada, os carretéis, a caixa de papelão, os barbantes, o pedaço de chumbo, e outras coisas, que nem quis espiar - e jogou tudo fora, no terreiro. Queria ter mais raiva. Mas o que não lhe deixava a ideia era o casal de tico-ticos-reis, o macho tão altaneirozinho bonito – upupava aquele topete vermelho, todo, quando ia cantar. Migulim tinha inventado de pôr a peneira meia em pé, encostada num toquinho de pau, amostrara arroz por debaixo, e pôde ficar de longe, segurando a pontinha de embira que estava lá amarrada no toquinho de pau, tico-tico-rei veio comer arroz, coração de Migulim também, também, ele tinha puxado a embira... agora chorava. " Campo Geral – João Guimarães Rosa