domingo, 10 de dezembro de 2017

Sobre a Esclerose Múltipla e eu : memórias do início

Embora meu primeiro blog, o extinto Tutaméia, tivesse sido criado justamente para tentar lidar melhor com o disgnóstico de Esclerose Múltipla (EM) que eu recebi em fevereiro de 2005, aos vinte e cinco anos de idade, depois que eu defendi o mestrado em 2009, esse tema não apareceu tantas vezes neste blog,  muito porque, de certa forma, aprendi a lidar com isso tudo e, aparentemente,  levo uma vida "normal".
Mas porque eu estive participando de uma pesquisa referente a EM essa semana e me foi solicitado relatar novamente como foram aqueles primeiros momentos e, como sempre que faço isso, me emocionei demais, chorei muito mesmo, foram meus momentos mais solitários e difíceis na vida toda, marcaram uma guinada na vida, definitivamente, pois foi quando ficou evidente meu caráter de sobrevivente. 
Me perguntaram como foi o primeiro indício e me lembrei que, ainda que meu humor andasse instável durante todo o ano de 2004 (tanto que eu já tinha até procurado terapia), a primeira manifestação física se deu em uma tarde de sexta feira, no começo de 2005, enquanto eu estava dando aula, na oficina  sobre Guimarães Rosa  para as crianças que eu apliquei na Escola Lumiar. Vi um pontinho branco no centro do meu olho direito e, como sempre usei lentes de contato, sai para limpar a lente, e vi que o  problema era no olho mesmo. Enquanto isso aquele pontinho foi se ampliando até que rapidamente, quado voltei para casa, quase toda minha visão direita estava esbranquiçada.
Eu, que já tinha estudado Saramago no meu primeiro projeto de pesquisa na faculdade de História, não pude não me lembrar da "treva branca" do Ensaio sobre a cegueira , pois como sempre é a literatura que me ajuda a abstrair as coisas da vida, mas antes de  dormir, a mancha branca tinha ficado preta e, realmente, eu estava cega do olho direito. Cega mesmo, nem meu labirinto funcionava mais, o que foi muito assustador.  No dia seguinte meu pai me levou ao oftalmologista, e eles até fizeram um diagnóstico correto (eu tinha tido uma infecção na retina), mas não  me disseram o que tinha causado isso, só me receitam um colírio, do qual não me lembro o nome, que doia terrivelmente quando eu usava. Mas muito em breve, tão repentinamente como ela se foi, eu já recuperava plenamente a visão e eu voltei a trabalhar normalmente. Ai não me lembro mais se foi nessa semana (acho que foi nessa mesma), ou na seguinte, que comecei a me sentir mal, um dia eu sai para ir trabalhar, mas alertei minha mãe que ia passar antes no pronto socorro, fiz isso. Lá fui passando por um momento muito filme de terror: fui perdendo as  capacidades neurolpogicas rapidamente em poucas horas já não tinha equilíbrio para ficar de pé, a sensibilidade na pele, na língua, um horror... Dai me encaminharam para o hospital, onde permaneci por uma semana, fazendo exames, perdendo as capacidades, já apresentava visão dupla e como não me falavam nada, tinha certeza que a próxima coisa que eu ia perder seria a vida. Bem tenso. Mas meu amigo Rafael ia me visitar todos os dias, nunca vou poder agradecer a ele, nunca mesmo! Outra coisa que me lembro, mas ai não sei como foi isso (se era na televisão ou no rádio), que eu ouvia muito essa música no hospital 

Foi ai que comecei a "conversar" com o Guimarães Rosa. Disse a ele que se eu saísse daquele hospital com minhas capacidades de andar, de comer e sentir retomadas, eu ia pesquisá-lo, da melhor forma possível, com amor e admiração.
Deu-se que no dia que eu recebi o diagnóstico, uma semana depois que eu tinha dado entrada, estava deitada no hospital sozinha no quarto e me chegou o café da manhã: café com leite, torradas e geleia. A enfermeira fez como fazia todos os dias,  deixou a bandeja sobre mim e saiu, mas daquela vez eu não consegui tomar. Não conseguia passar a geleia na torrada, tentei várias vezes acertar a faca na geleia e depois na torrada, mas não consegui. Me bateu um desespero e eu chorava de soluçar, repetindo se eu tiver que ficar daquele jeito, sem conseguir ficar de pé, sem conseguir andar, sem conseguir fazer coisas simples como passar geleia numa torrada, eu não queria mais viver. Muito tenso, não me lembro se foi logo em seguida que os médicos chegaram, ou de minha mãe chegou antes, só sei que foi naquele dia que me deram o diagnóstico e  me deram alta. Ai que fiquei muito brava: não podiam fazer isso, como iam me mandar para casa,sem andar, sem conseguir comer. Mas fizeram, garantindo que tudo ia voltar nos próximos dias, claro que eu não acreditei. Estava com raiva, especialmente porque achava que ninguém me defendeu nesse dia, eu estava completamente só.
Ai vim para casa, queria muito poder voltar a trabalhar, mas antes tinha que reaprender a andar e o Rafael me ajudou de novo, indo caminhar comigo sempre, na USP, na Paulista, até eu readquirir a capacidade e a confiança em andar.
Não lembro exatamente em quanto tempo isso se deu, mas lembro da sensação de realmente não saber se eu ia conseguir passar para 2006, por isso eu tentei de tudo, movi mundos e fundos, escrevi um projeto de mestrado sozinha, que foi lido pelo meu amigo Bruno, então fiz todas as provas, passei em três proficiências (inglês, espanhol e italiano) e no segundo semestre eu estava inscrita no mestrado em Letras, com uma orientadora desconhecida e ausente, mas para estudar Guimarães Rosa, como eu havia prometido a ele. Consegui entrar em 2006 e isso coincidiu com  o momento que eu consegui a transferência para a História, com o Elias, com quem permaneci até esse ano! No dia da minha defesa de mestrado, em maio de 2009, eu estava vestida de amarelo, como se fosse para uma festa, por para mim era isso mesmo, eu tinha sobrevivido, eu tinha conseguido,apesar de tudo! 
Lembrar de tudo isso hoje me dá uma sensação grande de como um fluxo natural se manifestou na minha vida depois que eu tive aprender a lidar com a EM. Uma das coisas foi que eu  virei uma pesquisadora profissional.Muitas outras coisas aconteceram sobre eu e a EM nesses treze anos de convivência, mas eu sempre gosto de dizer que ele, para mim, foi um presente de grego, veio para mudar meus hábitos, minha qualidade de vida, muita atenção comigo mesma. Mas ainda não é fácil saber da sua existência, como pode parecer a alguém que me vê de fora, e talvez nunca venha a ser...mas eu só posso agradecer aos deuses e aos orixás por terem me mantido viva e me dado a força que eu precisava para sobreviver a tudo isso.