quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

" Vaya”, África do Sul, 2016, dir. Akin Omotoso

 

Cartaz do filme

Eu costumo começar o comentário sobre os filmes com uma curta sinopse dele, mas nesse caso tem alguém que faz isso bem melhor que eu, com a palavra Akin Omotoso :



Lançado dois anos antes do tocante  "O Fantasma e a casa da verdade", Vaya conta a história de três personagens que viajam de trem do interior da Áfrca do Sul para a capital Joanesburgo e na cidade nós vamos descobrindo que suas vidas e histórias estão entrecruzadas.  Como vemos nessa entrevista com Omotoso, Vaya é um longa metragem resultante de um trabalho junto à pessoas em situação de rua na capital e por isso as histórias nos apresentam realidades muito brutas, mas sempre pinceladas pelo olhar ficcional do diretor. Em geral Omotoso não alivia em seus filmes e com esse não foi diferente, assisti-lo me despertou uma mistura de sensações o tempo todo, na maior parte do tempo, um suspense, uma tensão, pois a impressão que se tinha era de que as personagens, sempre com a faca no pescoço, iam se perder. Mas como já adiantei,  o genial do roteiro é que, mesmo em meio ao cenário de incertezas, violência, indefinições,  as tramas se entrelaçam de forma surpreendente, mas nem sempre isso significa final feliz. Só assistindo para saber.
Como comentar esse filme incrível? Acho que a melhor forma é seguir um roteiro tradicional, falando a história das três personagens protagonistas, na ordem que Omotosoos apresentou na sinopse em vídeo acima, destacando as questões que  cada uma nos apresenta. Já faço alerta de pode ter bum leve  spoiler.

1-      A história de Nkulu e a questão da tradição 

Nkulu sabe sacrificar a vaca

Nkulu vai a capital  com a função de encontrar o corpo do pai, que há muito vivia na cidade, e levar para ser enterrado em sua terra natal. Essa função é tão primordial para sua cultura que ele é sempre monotorado por sua mãe  outras mulheres pelo telefone

A mãe ao telefone e a comunidade ao redor esperam respostas

E Nkulu, na cidade, descobre que o pai tinha dinheiro e  outra família em Joanesburgo, que já o tinha sepultado. Nukulu descobre um irmão que precisava cortar uma vaca em sacrifício para sua mãe, mas não sabia fazer isso. Mas pai havia ensinado o pequeno  Nukulu que, para a surpresa de todos,  executa a função com maestria, sem muito sangue ou muito sofrimento no animal, mostrando sua profunda relação com a tradição. Mas o impasse do corpo não se resolve, então o rapaz encontra um tio que vivia na cidade e ouve dele que não haveria mais o que fazer se não o certo: dar um jeito e levar o corpo do pai para ser enterrado em sua terra natal, junto aos seus ancestrais, ou então sua mãe e sua família cairiam em desgraça e os antigos não os poderiam mais protegê-los.  Nukulu fica sem saída e seu fim não foi muito reconfortante. Essa inserção de assuntos relacionados à cultura tradicional, com muito peso e reverência,  no meio de enredos que se passam em ambiente urbanos é uma das coisas que eu gosto mais nos filmes de Omotoso. Talvez esse tipo de coisa seja, para mim, um marcador de que estou vendo um filme africano.

2 -A história de Zanele e a questão das mulheres 

       

Zanele, a bela dançarina

Se em "O Fantasma..." (2018) o papel das mulheres é central com duas protagonistas, neste filme anterior a personagem central divide seu protagonismo com mais dois rapazes, no entanto é a partir da história dela que vamos vendo ser desenvolvida uma trama complexa que expõe uma realidade dura para as mulheres na África do Sul.  Zanele é uma adolescente que dança e viaja com a prima menor para levá-la até sua mãe, que é uma famosa cantora em Joanesburgo. Elas não têm dinheiro algum e a sua única saída é esperar até que a prima as receba na cidade e lhes pague comida e outras necessidades. O problema é que Patrícia, a mãe cantora, não as recebe na hora e local combinado, fazendo com que as duas tenham que pedir abrigo na casa de um comerciante. Nessa noite temos umas das cenas mais tensas do filme, pois tememos pela menina e especialmente por Zanele, que é vistas como propriedade do comerciante, os outros homens, amigos de jogatina, que chagam a propor comprá-la, o que não é aceito pelo comerciante, mas nos dá uma ideia do que de pode pensar sobre mulheres naquele ambiente

Comprar a moça 

E quando Patricia (Phuthi Nakene), a mãe da menina chega no dia seguinte, conhecemos o seu bar e ficamos sabendo que ela não foi buscar a filha porque, alcoólatra, acabou dormindo embriagada. Mas é com ela que temos uma das mais belas,apesar de triste, cenas do filme, quando ela conta sua dolorida história a Zanele, de que foi patrocinada pelo vilarejo todo para viajar à cidade e ficar rica, já que todos diziam que tinha voz angelical e realmente tinha, mas não era a única, e na cidade não ficou rica, mas os moradores vieram lhes cobrar a conta, como ela não tinha dinheiro, pagou com seu próprio corpo e agora já não devia nada a ninguém. Então canta um blues
“Olá Damini... onde você esteve Damini? Eu acabei de chegar da cidade.”

A sofrida Patricia

E ela,linda, então aconselha a jovem Zanele a ficar na cidade, onde ela pode ser o que quiser, porque no vilarejo ela só seria a mulher de alguém e Zanele parece ter entendido o conselho, mas pede ajuda ao namorado de Patricia, que ela não sabe, mas é um comerciante de mulheres, para tentar um emprego de dançarina na TV, deixando Patricia muito enciumada, pois tem a impressão de que  Zanele quer lhe roubar o homem e a filha, e a manda embora de sua casa, mas o garoto que vive nos fundos acolhe a adolescente e eles conseguem ver a cena matinal em que Patricia tem que acordar um bêbado que foi dormir na porta da sua casa e a mulher chora de desespero

Desespero de Patricia

Falso teste para TV

Mas Zanele vai aprendendo a lidar com as dificuldades e, sempre com a ajuda do amiguinho e da priminha, vai redescobrindo sua própria beleza, que é cada vez mais valorizada. As cenas protagonizadas por sua beleza e juventude são muito impactantes

Arrumando-se










E a mais bela cena do filme é a de seu abraço no seu jovem amiguinho , dois sobreviventes

Abraço dos sobreviventes

3-      A história Nhlanhla e a inocência perdida


Nhlanhla saindo do trem

O jovem Nhlanhla é talvez a personagem mais inocente do filme, bastante simples o interiorano chega atraído por uma proposta de emprego de um primo, mas não sabe que tipo de trabalho vai ter que fazer. É recebido por dois homens que dizem estar à serviço do primo, mas eles o prendem e batem muito no menino, em cenas fortes de dor e desespero, e como o pobre Nhlanhla não sabe porque estão fazendo aquilo e só lhe resta implorar por socorro
Nhlanhla é torturado

Quando o primo chega, enfim, fica sabendo que o trabalho que tem que fazer é matar um homem, o que ele diz que não consegue fazer, mas o primo e os seus comparsas o ensinarão. Como o rapaz é resistente a ideia de assassinar, o primo o leva até um lixão, mostra pessoas miseráveis e alerta que, caso ele não faça o serviço, aquele será o seu destino 
Ou você mata, ou vira morador de lixão

Não vou contar o final de Nhlanhla,  só que o que acontece com ele encerra a narrativa e dele e dos outros personagens. Um excelente filme, amei!



Quero mais Akin Omotoso em minha vida <3