domingo, 11 de abril de 2021

Sob o olhar do leão (2009), de Maaza Mengister : um romance histórico etíope

 

Edição brasileira Record/Maaza Mengiste ok

Como lembra o crítico literário português Eduardo Lourenço, um romance histórico é uma narrativa ficcional onde o passado é evocado como presente e é disso que se trata este livro, pois embora possa parecer que o romance trate da história trivial  da família de classe média do médico Hailu, sua esposa Selam, os filhos Dawit e Yonas e sua nora Sara e neta Tizita, no desenrolar na narrativa vamos percebendo como esses personagens e suas histórias se envolvem ou não com  seu país. Na verdade eles  é que são o pano de fundo para o verdadeiro tema do livro, que é a História da Etiópia na década de 1970 e a guerrilha autoritária implantada pelo Darg (grupo marxista militarizado)  depois que o poder foi tomado do Imperador. Uma personagem do romance chega a comentar que

“O Derg é quem explora. Eles usam o imperador como desculpa para acabar com nossa liberdade e nossos direitos” (p. 249)   

Sobre esse mesmo tema, com todo o seu terror, eu  já tinha tratado ligeiramente aqui,   quando comentei o maravilhoso documentário “Descobrindo Sally” (2020) , de Tamara Dwait, que trouxe imagens reais, de época e foi muito emocionante,  mas a literatura é outra experiência, é uma linguagem que nos permite conhecer diversos ângulos de cada questão e,  através dela,  podemos “entrar na cabeça” das personagens, saber o que elas pensam, os seus motivos, e sensações. Neste romance experimentamos a vivência do médico e de toda sua familia e,também, a do imperador, que pensa no momento de sua queda eminente  :

“Já fui bem amado de Deus, o Rei dos reis. Fui o Leão Conquistador de Judá, descendente do Rei Dawit.Meu sangue, rico e vermelho, é parente daquele outro Rei dos Reis, o mais amado. Conduzi meu reino em honra ao Seu. Éramos como éramos porque Ele era.  (...) ao filhos abençoados de Sabá se multiplicaram, espalhados por encostas e castelos, enterrados em obeliscos e cavernas, mumificados com tanta perfeição quanto faraós. Etiópia, a mais amada das bem-amadas, ouves os tambores acima das nuvens? Sabes que anjos se aproximam e vêm em tua ajuda?Não haverá mais misericórdia para essa blasfêmia lançada contra nós.(...) o que levou 3 mil anos para ser construído não pode ser destruído em uma noite" (p. 131-4)  

E o mais interessante é observar que esse pensamento de que o imperador seria um predestinado, viria de uma linhagem quase “divina” dos grandes reis que governaram a Terra, estava impregnado no imaginário e nas crenças dos seus súditos, que choram com a notícia de sua queda, talvez prevendo o período de violenta instabilidade que se instauraria a partir de então? A literatura coloca estas questões e outras, como por exemplo, no documentário vimos algumas fotos do traumático “terror vermelho” em que as pessoas (rebeldes ou não ) eram executadas e seus corpos ficavam se decompondo na rua, pois nem um enterro, esses que foram tomados como “traidores da pátria”, mereciam. No romance a gente vê com mais detalhes esse horror e crueldade, chegamos a rondar as ruas pela madrugada com alguns personagens, recolhendo corpos clandestinamente, para entregar os corpos às famílias, em trecho assim:

“Dawit e Sara pararam diante de um menino descalço estendido na estrada de barriga para cima, com não mais de 15 anos. Seu ombro estava deslocado, o rosto inchado, o pescoço quebrado. Um bilhete estava alfinetado à sua camisa de algodão rasgada. SOU INIMIGO DO POVO. MÃE, NÃO CHORE POR MIM, MERECI MORRER". (p.285)

Do outro lado desta multiplicidade de ângulos está a crueza daquela realidade  vivida pela etíope Maaza Mengister, agora reconstruída em sua  narrativa.Ela escreve muito bem, mas não tem pena do leitor, descreve duros questionamentos pessoais como este, cenas terríveis, violentas e tristes como esse trecho que me deixou amargurada um bom tempo:

CENA TRISTE  -Hoje li uma parte muito, muito, muito triste desse livro, em que o médico Hailu tem que atender uma jovem, uma menina como ele a vê, que devia ser uma militante, que foi pega, torturada (não vou dar detalhes porque é bem chocante) e sua visão o leva a se perguntar "em que livro médico ele leria sobre como tratar daquelas feridas? O que ela teria feito de tão terrível para merecer ser apresentada coberta por um plástico transparente como um gigantesco troféu? Horror! A menina, que estava "fora do ar" só sussurrava "abbaye"(papai) e ele, que também era pai, só podia responder "estou aqui". Mesmo sabendo que ele estava, mas não o abbaye que ela procurava em seu desespero.
Poxa!

Tudo isso torna a leitura muito desafiadora, como é tudo relacionado à Etiópia, país que mora no meu coração e sobre o qual é sempre uma surpresa. Lembrando que se trata de um dos dois países africanos que não foi colonizado por europeus,  para pensar a realidades etíope é claro que todo o ideário crítico decolonial que venho construindo a partir do contato com os cinemas africanos, não cabem como uma luva. Etiópia não sofreu os horrores da colonização, mas nem por isso sua história tem menos dor e sofrimentos. São muitas guerras: contra a Somália (a partir dos anos 1940), contra a Eriteia (1968) e muito  violentas, sangrentas, traumáticas como a acontecida contra a Itália de Mussolini (anos 30, que foi vencida pelas tropas “salvadoras” de Hailé Selassié!) e acontecidas há tão pouco tempo, que ainda estavam nas memórias recentes das personagens e das suas famílias no romance. Além da própria guerrilha autoritária  a qual estão sendo submetidos pelos militares marxistas do Darg  à época do romance.

As cenas da atuação do Darg são as mais sangrentas, descrições de torturas executadas por militares que, infelizmente, conhecemos de relatos aqui do Brasil também na década de 1970.

Esse livro eu demorei muito para engrenar a leitura, queria trocar de obra o tempo todo, dai  quando comecei a gostar porque a autora  escreve bem, a coisa começou a ficar cada vez mais violenta, aquela crueldade de tortura militar, um horror, mas depois o capitulo final deu uma boa amarrada na narrativa, gostei muito da experiência, que foi  chocante, meu querido abril, mas necessária para meu objetivo de conhecer melhor outras áfricas que me dizem respeito. Que grande romance, pena que seja apenas para aqueles que têm muita coragem de encarar essa leitura!