Edição brasileira Record/Maaza Mengiste ok |
Como lembra o crítico
literário português Eduardo Lourenço, um romance histórico é uma narrativa
ficcional onde o passado é evocado como presente e é disso que se trata este livro, pois embora
possa parecer que o romance trate da história trivial da família de classe média do médico Hailu,
sua esposa Selam, os filhos Dawit e Yonas e sua nora Sara e neta Tizita, no
desenrolar na narrativa vamos percebendo como esses personagens e suas
histórias se envolvem ou não com seu país. Na verdade eles é que são o pano de fundo para o verdadeiro tema do
livro, que é a História da Etiópia na década de 1970 e a guerrilha
autoritária implantada pelo Darg (grupo
marxista militarizado) depois que o
poder foi tomado do Imperador. Uma personagem do romance chega a comentar que
“O Derg é quem explora. Eles usam o
imperador como desculpa para acabar com nossa liberdade e nossos direitos” (p.
249)
Sobre esse mesmo tema,
com todo o seu terror, eu já tinha
tratado ligeiramente aqui, quando
comentei o maravilhoso documentário “Descobrindo Sally” (2020) , de Tamara Dwait, que trouxe imagens reais, de época e foi muito emocionante, mas a literatura é outra experiência, é uma
linguagem que nos permite conhecer diversos ângulos de cada questão e, através dela, podemos “entrar na cabeça” das personagens,
saber o que elas pensam, os seus motivos, e sensações. Neste romance
experimentamos a vivência do médico e de toda sua familia e,também, a do imperador,
que pensa no momento de sua queda eminente :
“Já fui bem amado de Deus, o Rei
dos reis. Fui o Leão Conquistador de Judá, descendente do Rei Dawit.Meu sangue,
rico e vermelho, é parente daquele outro Rei dos Reis, o mais amado. Conduzi
meu reino em honra ao Seu. Éramos como éramos porque Ele era. (...) ao filhos abençoados de Sabá se multiplicaram,
espalhados por encostas e castelos, enterrados em obeliscos e cavernas,
mumificados com tanta perfeição quanto faraós. Etiópia, a mais amada das
bem-amadas, ouves os tambores acima das nuvens? Sabes que anjos se aproximam e
vêm em tua ajuda?Não haverá mais misericórdia para essa blasfêmia lançada
contra nós.(...) o que levou 3 mil anos para ser construído não pode ser
destruído em uma noite" (p. 131-4)
E o mais interessante é
observar que esse pensamento de que o imperador seria um predestinado, viria de
uma linhagem quase “divina” dos grandes reis que governaram a Terra, estava
impregnado no imaginário e nas crenças dos seus súditos, que choram com a
notícia de sua queda, talvez prevendo o período de violenta instabilidade que
se instauraria a partir de então? A literatura coloca estas questões e outras, como por exemplo, no documentário
vimos algumas fotos do traumático “terror vermelho” em que as pessoas (rebeldes
ou não ) eram executadas e seus corpos ficavam se decompondo na rua, pois nem um
enterro, esses que foram tomados como “traidores da pátria”, mereciam. No
romance a gente vê com mais detalhes esse horror e crueldade, chegamos a rondar
as ruas pela madrugada com alguns personagens, recolhendo corpos clandestinamente,
para entregar os corpos às famílias, em trecho assim:
“Dawit e Sara pararam diante de um
menino descalço estendido na estrada de barriga para cima, com não mais de 15
anos. Seu ombro estava deslocado, o rosto inchado, o pescoço quebrado. Um
bilhete estava alfinetado à sua camisa de algodão rasgada. SOU INIMIGO DO POVO.
MÃE, NÃO CHORE POR MIM, MERECI MORRER". (p.285)
Do outro lado desta multiplicidade de ângulos está a
crueza daquela realidade vivida pela
etíope Maaza Mengister, agora reconstruída em sua narrativa.Ela
escreve muito bem, mas não tem pena do leitor, descreve duros questionamentos
pessoais como este,
cenas terríveis, violentas e tristes como esse trecho que me deixou amargurada
um bom tempo:
CENA
TRISTE -Hoje li uma parte muito, muito,
muito triste desse livro, em que o médico Hailu tem que atender uma jovem, uma
menina como ele a vê, que devia ser uma militante, que foi pega, torturada (não
vou dar detalhes porque é bem chocante) e sua visão o leva a se perguntar
"em que livro médico ele leria sobre como tratar daquelas feridas? O que
ela teria feito de tão terrível para merecer ser apresentada coberta por um
plástico transparente como um gigantesco troféu? Horror! A menina, que estava
"fora do ar" só sussurrava "abbaye"(papai) e ele, que
também era pai, só podia responder "estou aqui". Mesmo sabendo que
ele estava, mas não o abbaye que ela procurava em seu desespero.
Poxa!
Tudo isso torna a
leitura muito desafiadora, como é tudo relacionado à Etiópia, país que mora no
meu coração e sobre o qual é sempre uma surpresa. Lembrando
que se trata de um dos dois países africanos que não foi colonizado por
europeus, para pensar a realidades
etíope é claro que todo o ideário crítico decolonial que venho construindo a
partir do contato com os cinemas africanos, não cabem como uma luva. Etiópia
não sofreu os horrores da colonização, mas nem por isso sua história tem menos
dor e sofrimentos. São muitas guerras: contra a Somália (a partir dos anos
1940), contra a Eriteia (1968) e muito violentas, sangrentas, traumáticas como a
acontecida contra a Itália de Mussolini (anos 30, que foi vencida pelas tropas “salvadoras”
de Hailé Selassié!) e acontecidas há tão pouco tempo, que ainda estavam nas memórias
recentes das personagens e das suas famílias no romance. Além da própria
guerrilha autoritária a qual estão sendo
submetidos pelos militares marxistas do Darg à época do romance.
As cenas da atuação do Darg são as mais sangrentas, descrições de torturas executadas por militares que, infelizmente, conhecemos de relatos aqui do Brasil também na década de 1970.
Esse livro eu demorei muito para engrenar a leitura, queria trocar de obra o tempo todo, dai quando comecei a gostar porque a autora escreve bem, a coisa começou a ficar cada vez mais violenta, aquela crueldade de tortura militar, um horror, mas depois o capitulo final deu uma boa amarrada na narrativa, gostei muito da experiência, que foi chocante, meu querido abril, mas necessária para meu objetivo de conhecer melhor outras áfricas que me dizem respeito. Que grande romance, pena que seja apenas para aqueles que têm muita coragem de encarar essa leitura!