segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Tereza Batista : As várias faces da heroína mítica de Jorge Amado

Quando o livro LINDO chegou
                          

Decidi que minha primeira leitura de 2022 seria Tereza Batista cansada de guerra , do Jorge Amado lá em dezembro do ano passado, porque tinha ouvido falar que ele é todo escrito em cordel (amo literatura oral) e sobretudo que Tereza (TB) seria a melhor heroína de Jorge! Quis saber , ainda nos últimos dias do ano passado me chegou essa primorosa edição da Editora Martins (1972). 

Começando pelas epígrafes que nos explicam duas coisas que não podemos esquecer que a vida de TB é uma história de de cordel! Ela, por sua vez, tem a concha muito dura para suportar todas as batalhas, mas sempre preservando  a ternura de seu interior!

Tradução do francês: "que a tua concha é muito dura para te
 permitir estar ali tenro: a ternura é como a água: invencível você gosta de caracóis?"


Sabendo que Tereza é na verdade uma heroína de cordel, o livro é todo construído assim: a cada capítulo um narrador narra uma história  contada em algum cordel  sobre Tereza Batista. O primeiro narrador já começa exaltando a valentia de TB para um interlocutor que dela pergunta, ele diz que ela 

 "carregou fardo penoso, poucos machos aguentariam com o peso; ela aguentou e foi em frente, ninguém a viu se queixando, pedindo piedade" (p. 3-4).  

 Depois fui lendo com prazer, pelo ritmo gostoso da escritura  de Jorge, mas separando a leitura pelos cinco capítulos/ cordéis. Interessante que todos capítulos apresentam uma gravura, como uma xilogravura, desenhada por Calasans Neto, que. bem ao modo da literatura oral, resume o conteúdo do texto. Aqui vou comentar capítulo por capítulo.  

1.

 

 Neste primeiro capítulo encontramos uma Tereza, que é uma sergipana, contratada como cantora de samba num cabaré de Aracaju, mas que demora um pouco a estrear seu show porque, logo ao entrar no cabaré, meteu-se numa briga com um homem que agredia uma mulher, uma coisa que ela não tolera, e tendo perdido um dente da frente, precisou esperar uns dias até que seu "dente de ouro" (representando aquela luta por uma mulher) ficasse pronto. Também conhecemos alguns personagens que voltarão a aparecer no resto do livro, pois interferirão nas guerras de Tereza, que é uma mulher bem porreta.

2.

Neste segundo capítulo, o maior e o mais difícil de ler, especialmente por uma mulher, pois conta a história de TB, tão  conhecida por todos nós, de menina pobre, que perdeu os pais num acidente ainda criança, vai ser criada por um casal de tios, Felipa e Rosalvo, ambos com segundas intenções na criança, Rosildo, caso tivesse coragem, queria  desejava matar a mulher, deflorar Tereza fugir com ela, já a tia queria vendê-la ao capitão Justiniano Duarte da Rosa, conhecido deflorador de meninas, que levava até um colar de argolas de ouro , mais de quinze, uma para cada defloração! E desse capitão, Tereza foi escrava por anos, sem nunca ter conhecido nada de bom na vida. Até que um dia surge Dan, um mocinho inconsequente, de férias da faculdade, que era amigo do capitão, mas que acaba seduzindo a jovem Tereza e a apresenta o prazer de ser mulher na cama com um homem :

"Dan seduzia Tereza. Sem querer, sem saber por que, à revelia de sua vontade, Tereza responde aos olhares - que olhos mais tristes, mais azuis e funestos, a boca vermelha, os anéis do cabelo, anjo caído do céu. Quando se foram rua afora, conversa de não acabar, Tereza escondeu no peito a flor trazida por ele. Nas costas do capitão, Daniel lhe mostrara a rosa fanada e tendo-a beijado, no balcão a pousou. Para ela a colhera e beijara; no seboso balcão uma rosa vermelha, um beijo de amor" Jorge Amado " (p,157).

  Um dia eles foram pegos em flagrante e Tereza logo percebeu que  Dan era um fraco e ela só podia contar consigo mesma para se livrar da escravidão e do capitão, nasceu a "Tereza medo acabou" (um dos nomes e guerra da TB), que defendeu primeiro a si mesma de seu senhor de escravo .

3.


Ai entramos num dos melhores capítulos do livro, onde TB é mesmo a grande  heroína! Tendo de amigado com um médico enquanto fazia a vida em Aracajú, vai viver com ele numa cidade do interior, pois ele vai assumir um posto de saúde, Mas quando veio a peste de Varíola (das tantas que assolaram o Brasil), que agora já tinha vacina, superfaturada claro, mas o que não tinha era quem tivesse coragem de sair  aplicar e cuidar dos doentes. Todos  morreram de medo de se infectar, inclusive o seu médico, e foi ela, que já tinha se vacinado na capital, a mais valente, que os políticos, os médicos, os enfermeiros, TB, percorreu as ruas miseráveis, entrou no leprosário para vacinar e cuidar. Para isso, chamou suas amigas do bordel e foram elas as heroínas contra a peste: 

Quando veio a peste, TB tinha assumido a chefia das "quengas da rua do Cancro" e a 'bexiga chegou com raiva, tinha gana antiga contra aquela população e o lugar, viera a propósito , determinada a matar, fazendo-o com maestria, frieza e malvadez, morte feia e ruim, bexiga virulenta. (...) Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas, a xistossomose, outras tantas meritórias pragas soltas no campo, como manter e ampliar os limites das fazendas do tamanho de países, como cultivar o medo, impor o respeito e explorar o povo devidamente? Sem a disenteria, o crupe, o tétano, a fome propriamente dita, já se imaginou o mundo de crianças a crescer, a virar adultos, alugados, trabalhadores, meeiros, imensos batalhões de cangaceiros - não esses ralos bandos de jagunços se acabando nas estradas ao som das buzinas dos caminhões - a tomar as terras e a dividi-las? Pestes necessárias e beneméritas, sem elas, como manter a sociedade constituída e conter o povo, de todas as pragas a pior? Imagine, meu velho, essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho" (p.199-201)

Esse capítulo é maravilhoso, termina com dois Omolu (um jovem e um velho) louvando a coragem de Tereza. Ao final o capítulo assume contar a história do folheto mais verdadeiro que circula no nordeste sobre TB!  

4. 


Nesse  capítulo sabemos da  história das duas vezes em que Tereza teve a morte nas entranhas. Não foi maior capítulo, mas pelo tema tratado, acho que podia ter sido mais curto. Não me emocionou a história de amor da mocinha Tereza e o usineiro Emiliano, que ao seu modo, foi meio coronel com ela e , pela primeira vez no livro, a força da heroína TB não brilhou,enfim.


5.


Esse último capítulo achei muito bom, logo já consigo ter uma visão geral dessa obra monumental, talvez a maior em tamanho de todas as quatro protagonistas mulheres - e mesmo que a parte inspirada no cordel da "greve do balaio fechado" tenha sido longa, quase interminável, pelo menos nela Tereza aprece brilhando em valentia, ao lado dos encantados e orixás, como eu gosto e comento melhor aqui. Nesse capítulo me reconheci demais, esses orixás, esses encantados eu conheço bem e muitas vezes pensei "por que eu não li isso antes?", sinto que os encantados, os mesmos que me guardam, guardaram esse livro pra que eu lesse na hora certa, sabendo mais coisas sobre mim mesma e também a minha história, e me reconhecesse nas paginas deste romance. Isso é muita coisa. Na verdade, não queria terminar de ler o livro, mergulhei tão fundo na história de mítica Tereza, admirei tanto, gostei dela. Mesmo que Jorge Amado, muito ao modo das narrativas populares (como em Cordéis e até no Grande sertão veredas), antecipe o final em vários momentos da trama e os orixás pedem calma, pois será feliz, o final foi bem surpreendente, com a citação de Caetano, Gil, Caymmi.

Para terminar, embora eu veja a personagem TB construída com base em grandes mitos femininos, em especial as heroínas guerreiras que brilham na literatura oral, especialmente os cordéis, o próprio Jorge Amado amplia a imagem desta grande personagem:

"...lhe digo, meu senhor, que Tereza Batista se parece com o povo e com mais ninguém. Com o povo brasileiro, tão sofrido, nunca derrotado. Quando o pensam morto, ele levanta do caixão" (p. 455)

Para  Lilia Moritz Schwarcz, no artigo "O artista da mestiçagem", publicado no livro  "O universo de Jorge Amado":

"Jorge Amado nunca pretendeu ser intérprete do  Brasil, mas sempre foi"(p. 35) 

E do brasileiro como ninguém, apresentá-lo assim, declaradamente, como uma personagem feminina, bela e  mítica é muito significativo. Talvez Tereza, ao lado do meu querido Pedro Arcajo, de Tenda dos Milagres, seja uma grande personagem da literatura amadiana.

Que grande livro ... amei

Um último comentário: A obra de Jorge Amado, pelo menos a que eu conheço, é muito musical. Na festa de casamento Tereza Batista, a primeira, temos o seguinte trecho:

"Estando de violão em punho, com certeza Dorival Caymmi cantará para a noiva, não lhe compôs uma modinha? Trouxe com ele dois rapazolas, ainda muito jovens, os dois com pinta de músico, um chamado Caetano, o outro chamado Gil" (p.458).

Sim, nos romances de Jorge sempre temos gente inventada e gente real, mas o que eu lamento é que, embora Tereza Batista possa ser a melhor personagem de Jorge Amado, ninguém liga muito para ela, né? Até sua adaptação na Globo (1992) não é muito comentada! E a trilha sonora achei bonita, cheia dos Caymmis, músicos incríveis, como nós gostamos, porém chega a ser bem fraca se comparada às trilhas das adaptações de suas "parentes" para a TV ou cinema, como Gabriela (até a da novela é maravilhosa! Djavan, Tom Jobim, Fafá de Belém, Elomar, João Bosco etc ) e Dona Flor (Chico Buarque , Bituca). Isso sem falar daquele doce deleite que é a trilha de "Tenda dos Milagres" que nunca paro de ouvir (Nela tem Caetano, a voz da Nana está mais amadeirada do que nunca!)
De qualquer jeito, o que eu mais gosto das adaptações dos livros são quase sempre as trilhas sonoras, dá um som, um novo ritmo para a obra.