quarta-feira, 29 de maio de 2013

Criança crionça e o nonsense para crianças

Este CD é delicioso, eu amo! Se quiser saber mais, acesse este link. Hoje eu achei esta resenha, escrita por Carlos Adriano, que explica muita coisa sobre ele, copio ela abaixo:


CANÇÃO E POESIA
Nonsense para crianças
Por Carlos Adriano
Cid Campos faz versões musicais de textos de Edward Lear, Lewis Carroll, Augusto de Campos e Paulo Leminski

Fazer arte para criança não é brincadeira. Por mais que elas adorem artes, manhas, bricolagens e desmontagens de jogos (o prazer do batoteiro bakhtiniano), e os adultos teimem em tentar adivinhar como agradá-las, surpreendê-las e educá-las.
Se o desenho permite às crianças um grau de empatia imediata pelo reconhecimento (do) visível, a música opera em esfera abstrata e menos aparente, livre da representação do mundo. Sem as conveniências da identificação da visualidade e da absorção inconsciente da música, a literatura, por jogar justamente com palavras, enfrenta outras armações para falar à criança, do aparato lógico de código às convenções da linguagem verbal.
Os dois escritores que mais se empenharam em desmontar os artifícios das palavras e das gramáticas tendo como suposto público-alvo as crianças –e que lograram executar a tarefa com um artesanato de humor lúdico– são homenageados pelo músico Cid Campos em seu CD recém-lançado “Crianças Crionças”.
Poemas de Edward Lear (1812-1888) e de Lewis Carroll (1832-1898) traduzidos por Augusto de Campos, pai de Cid, formam o núcleo do disco lançado pelo Selo Sesc (R$ 15,20). Na ciranda-constelação, rodam ainda poemas do próprio Augusto, de Haroldo de Campos (1929-2003), de Luis Turiba, de Paulo Leminski (1944-1989) e de Walter Silveira.
Os textos dos dois escritores ingleses da era vitoriana eram destinados (ou assim se faziam crer, ou assim se queria acreditar) à leitura das crianças, mas, por outros sentidos graças a trocadilhos e jogos de linguagem, sua voltagem de invenção e ironia atraiu a literatura e a crítica da alta modernidade.
Edward Lear é considerado o criador do gênero “nonsense”. Suas obras “A Book of Nonsense” (1846) e “Nonsense Songs, Stories, Botany and Alphabets” (1871) contêm poemas e ilustrações de sua autoria. Lewis Carroll (1832-1898) é o celebrado criador de “Alice no País das Maravilhas” (1865) e “Alice Através do Espelho” (1872) e seu gosto pela fotografia ilustra seu escopo com a imagem.
Mas a era vitoriana não nos deu apenas o “nonsense”, os “limericks” de Lear e as “portmanteau words” de Carroll. Numa época em que assistiu as diversões assumiram-se como espetáculos urbanos e populares (teatros de variedades e projeções de lanterna mágica, por exemplo), o período foi pródigo em exibir uma sorte de gadgets e dispositivos de ilusão por imagens ópticas e mecânicas que conjuraria (n)o cinema.
Émile Reynaud (1844-1918) foi o criador do engenhoso Teatro Óptico, que apresentava no Musée Grévin (Paris) suas “pantomimas luminosas”. O papel de pioneiro do cinema imprimiu-se pelo seu dispositivo: a projeção de filmes pintados e desenhados sobre uma banda flexível com imagens sequenciais, de inspiração infantil e juvenil. Um de seus filmes mais famosos foi o poético “Pobre Pierrot!” (1892).
Não era um espetáculo propriamente para crianças, mas é impossível não se deixar encantar pela tentação de correspondências entre o olhar daqueles espectadores que testemunhavam a inauguração de uma forma de imagens em movimento (nos tempos do pré-cinema e do cinema dos primeiros tempos) e o olhar virgem de uma criança.
Não se insinua aqui uma analogia entre distantes e diferentes tempos históricos, mas sugere-se uma im/provável hipostasia poética. É óbvio e natural que a percepção de crianças do fim do século 19 guarda um abismo de especificidades e diferenças com relação à percepção de crianças do início do século 21.
Hoje as crianças já nascem dominando a cultura do “copy & paste”, a bricolagem digital é quase intuitiva e natural, não gera nenhum espanto ou maravilhamento como as invenções optico-mecânicas de cem anos atrás. Mas é curiosa a correspondência entre o olhar (por essência e natureza) tabula-rasa de uma criança e o olhar não-domesticado (e não ingênuo) do espectador que via nascer a projeção de imagens em movimento.
É possível entender a bricolagem digital ("copy, cut, paste") como uma extensão genérica do cinema de animação, que não é só desenho animado, mas, sobretudo, já na origem, efeito, truque, trucagem, expedientes que funcionam como plataformas da aventura da fantasia e fazem a imaginação viajar. O espírito da bricolagem não deixa de ser um contraponto à descontrução do espírito do batoteiro.
O primeiro artista do gênero foi Georges Méliès (1861-1938), prestidigitador amador que comprou o teatro de Robert-Houdini e encenava a magia do dispositivo, em filmes como “Viagem à Lua” (1902) e “Viagem Através do Impossível” (1904). Émile Cohl (1857-1938) foi pioneiro da animação, com filmes de desenho animado e filmes que usavam a colagem, como “Fantasmagoria” (1908) e “Drama Entre os Fantoches” (1909).
Pelo teor dos textos e o tratamento musical, “Crianças Crionças” evoca essa sensação de um leitor-ouvinte estar descobrindo algo em seu momento inaugural. Os arranjos filiam-se à operação de bricolagem, pelos procedimentos digitais de produção e composição de música atualmente. A sobreposição de melodias e timbres e o humor da mixagem propõem rimas ao nonsense, às rodas de brincadeiras, ao bricabraque das crianças.
Os poemas e jogos de linguagem e de sentido foram trabalhados musicalmente por Cid Campos em arranjos de balada e salsa, blues e bossa nova, xote e country. Das 15 faixas, 7 são compostas de traduções (ou versões) de Lear (“A Pata e o Canguru”, “A Mesa e a Cadeira”, “Alface”) e de Carroll (“Canção da Falsa Tartaruga”, “Recado aos Peixes”, “Poema-cauda”, “O Mocho e a Gatinha”), realizadas por Augusto de Campos.
As traduções de Lear feitas por Augusto são inéditas em livro, incluindo a quadra “Do ‘Auto-Retrato de Edward Lear’” (de “How Unpleasant to Know Mr. Lear”; a tradução do poema inteiro também permanece inédita), que funciona como epígrafe introdutória no encarte, mas não foi musicada.
As traduções de Carroll feitas por Augusto estão todas (a partir de trabalhos de 1971 e 1973) em “O Anticrítico” (1986), com o estudo em “prosa porosa” “Lewis Carroll: Homenagem ao Nonsense” e quatro traduções, entre elas a radical “Jaguadarte”, que Arrigo Barnabé musicou e Tetê Espíndola gravou em “Pássaros na Garganta” (1982).
“Canção da Falsa Tartaruga” e “O Mocho e a Gatinha” foram gravadas por Adriana Calcanhotto, em “Partimpim” (2004), com Cid fazendo a segunda voz. Calcanhotto entusiasmou-se ao ouvir “Alface” no estúdio do músico e gravou-a em “Partimpim 2” (2009), que traz ainda a composição de Cid para “As Borboletas” de Vinícius de Moraes.
“A Pata e o Canguru” (“'A minha vida é muito chata, / Estou cansada de ser pata. / Quero você pra meu guru!’ / Disse a pata pro canguru”) e “A Mesa e a Cadeira” (“‘Que tal dar uma saída, / Bater papo, isso é que é vida! / Vamos, chega de madeira!’ – Disse a mesa pra cadeira”) são duas baladas sobre improváveis cantadas de bichos e móveis.
Em “Alface” (“Alface! Ó alface! / Faça-se, ó faça-se. / Ó alface, afinal, / Faça-se o nosso al- / Moço, face a face, / Ó alface!”), a rotação da canção sobre si mesma (pela linha melódica e pela textura dos instrumentos) sugere o sentido espiral da figura da verdura e da aliteração das palavras.
A harmonia da “Canção da Falsa Tartaruga” parece mover-se no mesmo passo em falso do ralentar do réptil, fazendo da escansão dos versos e da defasagem na sobreposição de versos tateios de um rastro em busca de bocados (“Quem não daria tudo só para beliscar essa bela sopa?”).
Em “Recado aos Peixes”, a música sibilina em acorde com a hesitação da ação e a suspensão de sentido: “Saquei então de um saca-rolhas / E fui eu mesmo atrás das bolhas. / E ao ver a porta já cerrada, / Bati, toquei, topei, que nada! / E ao ver a porta ali, zás-trás, / Girei a maçaneta, mas...”.
A fisionomia gráfica de “Poema-cauda” equivale à divisão frásica de trocadilhos e à modulada escala vocal, em batida country: “Disse o / Rato pro / Gato: / – Um julga- / Mento / Tal, sem / Juiz nem / Jurado, / Seria um / Dispa- / Rate. / – O juiz / E o jurado / Serei eu, / Disse / O gato, / E tu, / Rato / Réu / Nato, / Eu con- / Deno / A meu / Prato”.
A harpa midi e o vibrafone em “O Mocho e a Gatinha” geram um contraponto de extrações sonoras para outro conto de namoro: “O mocho e a gatinha foram pro mar / Num lindo bote verde-ervilha. / Eles tinham mel e grana a granel / E uma nota de uma milha”.
Além das versões de Lear e de Carroll, o disco traz dois poemas inéditos de Augusto, feitos para este disco: “Criança Crionça”, inspirado nas palavras do poema-desenho de sua neta (e filha de Cid) Julie, e “A Gaita do Jabuti”, inspirado numa lenda tupi de “O Selvagem” (1876), de Couto de Magalhães, e adaptando-a para fazer soar a gaita, curiosamente um instrumento tocado por Augusto, na faixa “Flor da Boca” do disco de Cid “No Lago do Olho” (2001).
Outra letra de Augusto, “De Ninar” foi gravada por Cid em “Canções de Ninar” (1992) da dupla “Palavra Cantada” (Sandra Peres e Paulo Tatit), que viria a se especializar em músicas infantis. O novo CD de Cid traz ainda poemas de Haroldo de Campos (“A Gata Lady Bi”), Luis Turiba (“Ver (durinhas), Frutóides e Legu (mimosas)”), Paulo Leminski (“A Lua no Cinema”) e Walter Silveira (“O Desafio”, “Garça”).
A canção “Criança Crionça” vale-se da metamorfose de moda de viola, combinando violão, viola 10 cordas, mandolim e harpa midi às vozes de Cid e Leo Cavalcanti (que participa dos vocais em outras nove canções), nas pistas das manchas que camuflam e enganam os sentidos: “Mas uma criança / Chamou a responsa / Criou uma dança / A dança da onça / Criança crionça / Crionça criança / Dançando essa dança / A onça desonça / Despança / Dispensa / Sua comilança / E hoje só pensa / Em dançar a dança”.
Em “A Gaita do Jabuti” (“Jabuti tinha uma gaita / E saía pela mata, / Tocando todo janota. / A onça, invejosa-nata, / Queria, queria a gaita / ‘Me dá tua gaita, jabota!’”), o arranjo dispõe do instrumento do título e do banjo para deixar respirar e engraçar as rimas em “ata” e “ota”.
Para encerrar o CD, “De Ninar” (“Na água parada / O peixe não faz nada / Nada nada nada / E a criança o que faz? / Dorme dorme dorme / Que amanhã tem mais”), em que os sentidos de substantivos e de verbos embalam o acalanto composto por viola, sanfona e percussão.
Uma primeira audição geral dá a impressão de que as canções escapam de um previsível tom infantil que se convencionou adotar para produções do gênero. O teor da infância parece residir mais nas texturas dos textos, com suas brincadeiras de linguagem, e nas texturas musicais, com suas combinações de ritmos, melodias e harmonias, o que cria um tom de estranhamento afinado ao tom do nonsense.
No texto que apresenta o disco e consta do encarte, Adriana Calcanhotto, que adota a persona de Partimpim em seus discos para crianças, aponta a fluidez e a naturalidade das canções conseguidas por Cid a partir de poemas de métrica intrincada e invenção vocabular, e lembra a íntima convivência do músico com a poesia, já em família.
Neste ano, em que lançou na revista "Errática" o clip-poema “TVGRAMA 3” e o poema-filme “Statue of Victory: Profilograma” (roteiro sousandradino de bricolagem de imagens que contou com a contribuição musical de Cid) e publicou dois livros de tradução de poesia – “Byron e Keats: Entreversos” (ed. da Unicamp) e “August Stramm: Poemas Estalactites” (ed. Perspectiva) –, Augusto de Campos também assina o projeto gráfico do CD, como costuma fazer com seus livros.
Além de ilustrações de sua autoria, Augusto valeu-se dos desenhos de Lear e de John Tenniel (1820-1914), considerado o melhor ilustrador de Carroll. Na capa do CD e reproduzido no encarte com variações cromáticas, um poema-desenho de Julie Bozon de Campos, filha de Cid e neta de Augusto, feito quando tinha sete anos.
Por que um CD como “Crianças Crionças” não é adotado como material didático nas escolas? O selo Sesc já atesta o estatuto educacional do produto e o timbre da literatura musicada, com o lastro de criação e competência de um dos maiores poetas e tradutores da língua portuguesa, é outro atributo que justificaria que um CD como este tocasse nas salas de aula e tocasse também com outros sons o processo de aprendizagem.
Com seus poemas e desenhos, mas também com seu projeto ideológico, o “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade” (1927) apontava para um sentido órfico que faria, de cada um e de todos, alunos de poesia, alunos de música, alunos de artes. Ver com olhos livres, ver o novo com olhos novos.
Talvez haveria aí um ideal romântico, à la Rousseau, de tomar a “criança” como depositária de uma nostalgia progressista, parâmetro de uma condição de pureza do olhar e da escuta (ainda que “impuros” sejam os meios e as formas, no sentido que a mixagem e miscigenação digital propagam a contaminação de formas e suportes).