quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Mick Jagger por Tom Zé

Este artigo escrito por Tom Zé está disponível aqui e copio para deleite geral.

O sêmen de Jagger e a perpetuação da raça rock and roll

"Mick Jagger diz que tentou imitar no palco a dança de James Brown. Mas seu movimento que mais me chama a atenção são as caminhadas altivas e longas, peito erguido, cabeça levantada, em que ele, lindo como cavaleiro da Coroa e orgulho da raça, lembra um Ricardo III que seja homem-e-cavalo de uma só vez. E lá vai o carteiro, atávico cavalo-estafeta, indo e vindo por toda a extensão do palco, sem pausa, levando e trazendo notícias de toda e para toda a parte. O rock foi uma grande notícia sobre a Terra. Imprimiu transformações na vida e nos costumes. Notícias como as que destruíram os cinemas americanos na estreia do inesquecível No Balanço das Horas, em que Bill Halley tocou o estonteante Rock around the clock (Deus tenha piedade de nós).

Apesar de guerreiro destruidor, o rock não é tão pessimista quanto a obra Angelus, de Paul Klee, porque, gostem ou não os conservadores, ele, mesmo avassalador, contém em seu ventre a semente para substituir o que foi.

Mickavalo Jagger é, mais que a enfraquecida Rainha Elizabeth e que o opaco príncipe herdeiro, o Cavaleiro que mantém um pouco do prestígio mundial que envolvia o Império Britânico, hoje contraído e despojado de Jagger. E assim segue o Cavaleiro em diversas frentes: 1) Recompõe, pela canção, parte da presença do Império e abarrota os cofres da Coroa com direitos autorais, pondo na boca e no coração do Planeta trovas e canções de fonte de inspiração britânica. 2) Empenha-se na tarefa de espalhar o seu sêmen imperial, mantendo um harém descontínuo nos cinco continentes, gerando filhos que se tornam conhecidos ou não – a depender das conveniências sociais de cada uma das régias concubinas eleitas.

Estas, numa função tão importante para a Coroa, são criaturas escolhidas com esmero. Sir Jagger não sairia por aí espalhando o régio sêmen a não ser na cavidade adequada das moças mais geneticamente promissoras, transformando o prazer pessoal numa experiência geradora que venha apurar a descendência do Rei Artur e de sua Távola Redonda. O harém imperial merece mais considerações técnicas. É criado com feições e estratégias de uma guerra de guerrilha. Não há quartel estabelecido, não há soldados fardados que possam de antemão ser reconhecidos, não se sabe dia, país ou hora em que o harém vai se instalar. Os detalhes ficam a cargo do feeling do cavaleiro Jagger.

Ele tem de possuir no olho um verdadeiro laboratório de avaliação genética que, com o ‘glimpse’ de um raio, identifique entre as moças que tiveram a astúcia e habilidade de passar pela segurança e chegar ao seu camarim qual seria uma parceira adequada para a procriação que, ali mesmo, num canto de banheiro, atrás de alguma porta, ou num fortuito corredor, possa ser a depositária do régio sêmen, passando a ter a responsabilidade de gerar um descendente digno de Galahad, Lancelote, Palamedes, Percival e de todas as Távolas e possessões.

No passado, os poderosos do governo britânico diziam que seu império era tão extenso que, com sua imensidão, “o sol nunca se punha”. Nos dias atuais do império enfraquecido, só o harém de Mick Jagger tem cacife para repetir o provérbio."



Ai você lembra da Christina Anguilera" You want the moves like jagger " rs



domingo, 23 de novembro de 2014

"...UMA PENA DESPERTÁ-LA SEM ARRULHOS..."

"Rosa Cabarcas tinha me aconselhado a tratar a menina com cuidado, pois ela ainda sentia um resto do susto da primeira vez. E tem mais: acho que a própria solenidade do ritual havia agravado o medo e tinha sido preciso aumentar a dose de valeriana, pois dormia com tal placidez que teria sido UMA PENA DESPERTÁ-LA SEM ARRULHOS. Assim comecei a secá-la com a toalha enquanto cantava para ela em sussurros a canção de Delgadina, a filha mais nova do rei, requerida de amores pelo pai. À medida que secava ela ia me mostrando os flancos suados ao compasso do meu canto :'Degaldina, Degaldina, tu serás minha prenda amada'. Foi um prazer sem limites, pois ela tornava a suar por um lado quando eu acabava de secá-la pelo outro, para que a canção não terminasse nunca. 'Levanta, Degaldina, ponha tua saia de seda' , eu cantava junto ao seu ouvido. No final, quando os criados do rei a encontraram morta de sede em sua cama, achei que minha menina estava a ponto de despertar ao escutar o nome. Então, essa era Degaldina. 

Voltei para a cama com minha cueca de beijos estampados e me estendi ao lado dela. Dormi até às cinco ao acalanto de sua respiração apaziguada." Gabriel García Márquez . Memória de minhas putas tristes, p. 64



Mas que beleza de narrativa! É um trecho da segunda noite que o nonagenário passa ao lado da garota virgem adormecida, a influência do Kawabata é muito forte pela valeriana e tudo mais, e eu nem comento que no livro do Gabo, o velho sabe que a mocinha virgem passa o dia todo em seu trabalho FIANDO e que tem muito medo de que seu trabalho lhe arranque algum SANGUE ( aqui, referências diretas à Bela Adormecida), mas mais que isso... ele não queria deixá-la sem arrulhos (que é uma das formas de se chamar a canção de ninar), por isso ele canta para ela continuar dormindo como se a canção 'não terminasse nunca' e ela continuasse acalentando também o seu sono com sua 'respiração apaziguada' ...
Estou adorando !

Aqui o tema que é cantado para a menina, uma canção mexicana :

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez

"É apenas na aparência que inesperada e surpreendente história de amor entre um ancião e uma ninfeta se insere numa tradição da qual fazem parte  o VladimirNabokov de Lolita, o Thomas Man de Morte em Veneza e o Yasunari Kawabata de A Casa das belas adoormecidas, ainda que este último tenha sido citado na epígrafe de Memórias de minhas putas tristes e fornecido o mote a partir do qual o escritor colombiano Gabriel García Márquez pôs fim a um período de dez anos longe dos romances.
Um leitor mais atento vai encontrar aqui as principais referências e motivações desse hino de louvor à vida e, por extensão, ao amor, já que  um não exite sem o outro no imaginário do Prêmio Nobel de Literatura  de 1982. Apesar de parecer estranho, uma dessas chaves está  no conto de fadas  A Bela Adormecida, que não por acaso, é citado em um momento cruial da narrativa ambientada em uma cidade colombiana imaginária, numa época que de tão remota parece imemorial.
A semelhança com a famosa fabula do escritor francês Charles Perrault fica mais explícita  na adolescente , que aqui surge dormindo, como se estivesse a espera de seu príncipe encantado. Mas ela também está presente no velho jornalista, narrador dessas memórias, que vai viver cerca de cem anos de solidão embotado e embrutecido, escrevendo crônicas e resenhas maçantes para um jornal provinciano, dando aulas de gramática para alunos tão sem horizontes quanto ele, e, acima de tudo, perambulando de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis.
Só quando acorda ao lado da  ainda pura ninfeta. Degaldina é que este personagem vai ganhar a humanidade  que lhe faltou enquanto fugia do amor como se estivesse atrás de si um dos generais que se revezam no poder da mítica Colômbia de  Gabriel García Márquez. O medo do amor é tão superlativo que o anti-herói dessas memórias vai preferir conviver com a mais terrível ameaça para o macho latino: o fantasma da impotência. E enquanto tivesse forças, resistiria ao poder do amor.
Parte desse medo se deve aos ridículos a que o amor nos expõe, aqui elevado à última potência em cenas como a que o ancião anda numa bicicleta cantando 'com ares de grande Caruso', ou aquela em que destrói um quarto de bordel. E por mais que lidemos com esse sentimento como se fosse um paletó dois números acima do  nosso, apenas ele e tão-somente ele, o amor, nos faz humanos, como desde tempos imemoriais a arte vem tentando provar. Seja nos boleros mais sentimentais, que ressoam nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção, ou em obras-primas como esta.  "

(texto da orelha do livro "Memórias de minhas putas tristes", de Gabriel García Márquez)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Ver: Amor, novamente ...


Sempre achei estranhíssima  minha história com "Ver: Amor", livro que passou por mim como um trator ... claro que é um ótimo livro, Grossman é excelente escritor , mas a minha reação ao livro é forte demais, o que tem ali que me desmonta mil vezes? 

Mais estranho é que, mesmo eu sempre me perguntando isso, nunca tinha procurando nenhum texto sobre o livro até esta tarde na biblioteca... achei artigos da professora Bertha Waldman. Foi avassalador!
Como eu já falei aqui, me atrai especialmente a relação do menino Momik com o Vovô  Vassaman (um sequelado, sobrevivente de campo de concentração)... ao Bertha escreve:

"O  Vassaman de Momik não é só um personagem; é a própria história, um ser de linguagem, e por isso, não pode morrer. Apesar de alvejado tantas vezes, Vassaman não consegue morrer.” Betha Waldman 

Que ele era a narrativa eu tinha percebido, tem momentos que ele é Sherazade e tudo, mas a história... que demais, que demais! Tem, também, um depoimento de Grossman que me levou às lágrimas no ônibus, com trechos assim:
"...  para mim, 'Ver:Amor', que é uma história a respeito da Shoá, não é em absoluto uma história a respeito da morte, mas, de fato, uma tentativa de entender a própria vida. E o que nos perturba tanto é poque a Shoá pôde ocorrer do modo que ocorreu. Porque talvez, assim me parece, o assassinato maciço e anônimo pôde ocorrer de forma tão  eficiente apenas em um mundo em que a própria vida, a ideia de vida de humanidade, tornou-de algo anônimo, sem sentido, vazio,"

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Escrita de si, escrita da história

"(Estudos da 'História da vida privada') indicam, de múltiplas formas, o vínculo existente entre espaço de grande investigação  histórica - aquele do privado, de onde deriva a presença das mulheres e dos homens 'comuns' - e os novos objetos, metodologias e fontes que se descortinam diante dele . É justamente neste espaço privado, que de forma alguma elimina o público, que avultam em importância as práticas de uma 'escrita de si'. (GOMES, Angela de Castro. "Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo ". In:  GOMES, Angela de Castro (org). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 10)
Leia a introdução do livro na íntegra  Aqui.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Mapa de Berlim de Walter Benjamin




"Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa Pharus de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No Zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde deliberava sobre as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento"
(Walter Benjamin)