quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Não é muito feio um mundo que esvazia de sentido uma de suas maiores escritoras, como esse ano os brasileiros fizeram com Clarice Lispector? Porque para mim ela ainda é repleta de significados eu insisto em colar esta crônica que considero um dos seus melhores textos...se alguém ai ainda tiver coragem: ouça!

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Série Encontros : Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro



Renato Sztutman : Você acredita que sua obra possa contribuir para uma antropologia da sociedade brasileira?

Eduardo Viveiros de Castro : Não estou excessivamente familiarizado com a antropologia da sociedade brasileira. Fui fazer etnologia para fugir da sociedade brasileira, esse objeto pretensamente compulsório de todo cientista social do Brasil. Como cidadão, sou brasileiro e não tenho objeção a sê-lo. Ou melhor, para dizer a verdade, frequentemente me vejo sentindo grande vergonha de sê-lo; não faltam motivos, passados como resentes, históricos como cotidianos, para isso. Mas sempre lembro que se fosse natural de qualquer outro país, teria motivos tão bons ou melhores para sentir vergonha, e é isso que me faz não ter realmente objeções ao fato de ser brasileiro. Porque, em última análise, tanto faz. Ser humano, perante os demais viventes, já é complicado o bastante. O que não quer dizer que a consciência de ser brasileiro não me mobilize eticamente, não me interpele politicamente, nem me faça experimentar a mistura ambivalente de sentimentos e de disposições associadas a qualquer pertença objetiva.
Fico aliás pensando que talvez seja nisso que consiste realmente o sentimento de pertencer a uma nação: ter motivos todos próprios para se envergonhar, tão próprios quanto (senão mais que) os sempre lembrados motivos de se orgulhar. Isso quando os ditos ‘motivos’ não são, como suspeito que quase sempre são, os mesmos motivos. Todo orgulho confessa uma vergonha. E toda vergonha clama por (a) pagamento.
Enfim, sou brasileiro e coisa e tal. Raras são as vezes em que penso nisso; e quando o faço, em algumas delas acho até bom. Como disse bem Tom Jobim,ao retornar ao Rio de Janeiro depois de anos morando nos Estados Unidos: ‘lá fora é legal,mas é uma merda; aqui é uma merda, mas é legal...’Grande verdade. De qualquer modo, como pesquisador não acho que seja obrigado a ter como objeto a chamada ‘realidade brasileira’, essa curiosa e intraduzível noção. Não se exige isso dos matemáticos ou dos físicos. Os físicos brasileiros não estão estudando a ‘realidade brasileira’. Estão estudando, salvo engano (meu ou deles), apenas a realidade. Por que um cientista social brasileiro não pode fazer a mesma coisa? O Brasil é uma circustância para mim, não é objeto; entendo, sobretudo, que o Brasil é uma circunstânci para os povos que eu estudo, e não sua condição fundante.” P. 48)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O avanço do conservadorismo desinformado

COLO AQUI UM TEXTO DISPONÍVEL EM "EU VI O MUNDO", QUE SÓ PODE SER LIDO POR QUEM TEM CORAGEM :

Maurício Caleiro: O avanço do conservadorismo desinformado
terça-feira, 8 de novembro de 2011

Reações a doença de Lula e à PM na USP evidenciam crise ideológica e cultural

por Maurício Caleiro, em seu blog, sugerido pela Maria Frô


As reações, na internet, a dois eventos recentes – o anúncio de que o ex-presidente Lula está com câncer e a atuação da PM na USP – têm causado perplexidade e repulsa pelo modo agressivo com que se expressam e pelo que evidenciam de falta de educação, preconceito e inadaptabilidade ao debate democrático. Mas, como veremos, há mais pontos em comum entre essas duas manifestações de intolerância do que à primeira vista sugerem.

Agressões ao doente

Receber a notícia de que alguém está com câncer – ou com outra doença tida como grave – costuma despertar compaixão no ser humano. Alguns atribuem tal reação a uma suposta bondade inerente à nossa espécie, acreditando que por baixo das máscaras que adotamos para a vida em sociedade vicejam corações plenos de boa intenção; os não-rousseaunianos, mais reticentes, afirmam tratar-se de uma reação ditada pelo instinto de preservação: o temor de que venhamos a padecer da mesma enfermidade faz com que nos identifiquemos com a dor alheia como forma de esconjurá-la.

Seja como for, considera-se que festejar e regojizar-se com o anúncio da doença alheia é reação que ultrapassa todos os limites do bom senso e da convivência em sociedade. É por isso que o que se viu, na internet mas também nas redações, logo após o anúncio de que Lula está acometido de um câncer na laringe, marca um dos pontos mais baixos do debate público no Brasil. No momento de maior fragilidade do ex-mandatário, deu-se vazão a todo o ódio e preconceito de classe acumulado nos anos em que ele esteve no poder.

O texto definitivo sobre o caso veio da pena cada vez mais afiada de Maria Inês Nassif, que entre outros pontos relevantes apontou que não é de hoje que o respeito mínimo devido a todo presidente eleito não tem lugar quando se trata de Lula da Silva – e que entre os que através de tal procedimento desrespeitam a própria instituição da Presidência está a própria mídia, que deveria dar o exemplo.

Insultos aos estudantes

Pois nem bem as forças democráticas se recuperavam de tais excessos agressivos – que levaram até jornalistas notadamente conservadores a reclamar – e o país já se via diante de um novo efeito-manada, uma onda de insultos contra estudantes da USP que, em reação contrária à decisão (tomada em assembleia própria) de desocupar o prédio administrativo da FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas) decidiram ocupar a Reitoria para continuar protestando contra a ação da PM no campus, com revistas constantes, que culminaram na prisão de três alunos de Filosofia flagrados com um cigarro de maconha.

Daí em diante o que se viu, mesmo entre autointitulados esquerdistas, foi uma onda de protestos contra o que chamam de “os maconheiros da USP”. Mesmo deixando de lado a generalização descabida, há, em pleno século XXI – quando as principais democracias reconhecem que o uso de maconha é questão de foro pessoal e do âmbito da saúde, não da segurança pública – algo de intrinsecamente anacrônico no uso do ajetivo “maconheiro” como forma de promover estigmatização e desqualificação. Além disso, assim como ocorreu com a doença do ex-presidente, o que o fenômeno da reação virulenta à invasão da Reitoria da USP nos traz é, uma vez mais, o ódio de classe e os recalques de fundo psicológico, vindos à tona de forma agressiva e com vocabulário tosco. A internet enquanto catarse.

A herança do desmanche

A realidade, porém, é bem mais complexa do que os histéricos querem fazer crer. Como explica de forma detalhada o professor da USO Pablo Ortallado, em ótimo artigo, a violência na instituição está diretamente ligada a um processo de restrição cada vez maior do exercício da democracia interna. Por meio deste, a USP é, hoje, uma das universidades públicas brasileiras em que professores, servidores e alunos têm o menor peso nas decisões importantes, a cargo de colegiados de membros de estâncias burocráticas superiores que se transformaram em verdadeiros feudos, onde o poder se perpetua nas mãos de poucos.

Em decorrência disso, cerceia-se ao máximo o raio de ação política dentro das regras do jogo por parte de alunos, professores e funcionários. Ora, quem já pássou por uma ditadura sabe: quando as regras reprimem o exercício da democracia, é dever do democrata desobedecer e lutar pela modificação delas. Achar que a brutal repressão institucional a que a USP vem sendo submetida nos últimos 20 anos iria ser aceita passivamente é subestimar a inteligência dos uspianos.

Agrava essa situação o modelo urbanístico adotado pela universidade paulista, que é criticado, entre outros, pela arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP) Raquel Ronik, o qual colaboraria para a segregação social no campus e entre moradores da cidade e uspianos, como apontam os alunos de Relações Internacionais Leonardo Calderoni e Pedro Charbel, em artigo que denuncia a forma manipuladora como o conceito de autonomia é instrumentalizado pela mídia e pelas autoridades universitárias.

O PSDB tem um papel preponderante nesse estado de coisas, não só porque, à frente do governo de São Paulo há 17 anos, é co-responsável pelo estágio urbanístico-social-institucional da USP, mas porque José Serra – que não nomeou o candidato a reitor que ocupava o primeiro lugar na lista tríplice, preferindo o polêmico Rodas – e Geraldo Alckmin estavam a cargo do governo nas duas vezes em que a Tropa de Choque da PM, num ato inimaginável numa verdadeira democracia, invadiu o campus – a mais recente na manhã de hoje -, utilizando de violência desmedida contra estudantes desarmados.

PM no campus

A reação de apoio à ação da polícia, mesmo nas raras vezes em que é expressada de forma polida e educada, evidencia o profundo conservadorismo que marca a sociedade brasileira atual. Trata-se de um paradoxo: no momento mesmo em que 28 milhões deixaram de ser miseráveis e 40 milhões ascenderam à classe média, e que o Brasil tornara-se efetivamente um player na política internacional, o debate sobre questões internas involui não apenas na forma (a difamação e os ataques pessoais substituindo o diálogo civilizado e a argumentação), mas também no conteúdo (com pressupostos que há pouco eram exclusivos de fanáticos de direita tornando-se de uso corrente entre os estratos médios e altos).

Seria preciso uma alta dose de auto-engano para não se aperceber que o país, tanto em termos culturais quanto ideológicos, claramente retrocedeu, se comparado àquele de 40, 50 anos atrás. Não há como comparar o nível das discussões públicas hoje, no Brasil, àquele que se deu, por exemplo, no bojo do processo de redemocratização do país.

Regredimos?

Antes que as palavras aqui ditas sejam distorcidas, cabe assinalar que não se quer com isso, de forma alguma, sugerir que o ambiente da ditadura era mais profícuo em termos culturais e ideológicos do que os atuais. Ainda que isso seja verdade em alguns períodos – notadamente entre 1964 e 1967, hiato que o crítico literário Roberto Shwarz qualificou como os “anos de hegemonia cultural da esquerda” -, isso se deve mormente ao ímpeto antiditatorial de artistas da coragem e do talento de um Chico Buarque ou de um Vianinha – e à necessidade de unir-se no combate a um inimigo em comum.

Na verdade, a crise ideológica e cultural que hoje uma vez mais se agrava tem como origem justamente a ação sistemática da ditadura contra as formas culturais mais autênticas e mais revolucionárias, em prol do investimento vultoso na constituição de uma sociedade televisiva de massas – uma herança que os civis de direita que marcaram o longo período de transição para a democracia só açularam, muitos com proveito eleitoral.

O preço da desideologização

Há uma década, a centro-esquerda tem sido eleita, é verdade, mas, como as eleições que culminaram com a vitória de Dilma Rousseff evidenciaram de forma inconteste, não foi através de uma proposta programática de perfil ideológico – muito pelo contrário: tal como o “Lulinha Paz e Amor” de oito anos antes, a hoje presidenta submeteu-se ao regime padrão de marquetagem, chegando, ao final da campanha, ante as baixarias desmedidas de José Serra, a retroceder em questões de suma importância, como o aborto.

É precisamente quando se evidencializou de forma mais clara, àqueles que não se recusaram a ver, que a crise ideológica transcendia as questões colocadas pelo neoliberalismo, as quais dominaram o período imediatamente anterior (e, muitas delas, continuam na ordem do dia), e que a crise cultural, como qualquer crise estética, era também uma crise ética.

“Mas o importante é que eles venceram” – dirá o esquerdista pragmático. Sim, venceram, mas o preço que a sociedade brasileira como um todo vem pagando por essa recusa em um debate ideológico é uma despolitização da política, uma desideologização da esfera pública que ao final só beneficia os grandes grupos de mídia corporativa, os quais têm como interesse precípuo obter pontos no Ibope, e não levar cultura e educação ao público espectador, como “exige” a Constituição.

Dieta indigesta

A sobreposição do marketing à política e a naturalização das telecomunicações como meio de entretenimento – seja através das narrativas ficcionais das novelas ou das narrativas protojormalísticas dos telejornais – certamente desempenham um papel fundamental nesse processo de alavancagem do conservadorismo desinformado, pois não há como evoluir ética e ideologicamente com uma dieta de Datenas, Lucianos Huck, CQCs e coisas do gênero. Um país que, há 11 anos, quase para durante meses para assistir a Big Brother Brasil está profundamente enfermo em termos de ideologia, ética e estética – e negar isso em nome de uma suposta pluralidade democrática de escolhas é tapar o sol com a peneira.

E a relação entre política e mídia está diretamente imbricada na questão: cada vez que o governo Dilma demite um ministro após um factoide da Veja, não só estimula um jornalismo-denúncia – forte em escândalo mas fraco em evidências -, mas, ao fortalecer a posição da revista ante o público, está, na prática, incentivando a difusão de um ideário conservador (inerente à publicação) que transcende a política e se torna moeda corrente em questões comportamentais e culturais.

É pelas razões acima expostas que já passa da hora dos governos ditos de centro-esquerda renunciarem à ferrugem neoliberal que emperra o protagonismo do Estado na área cultural e tomarem as rédeas de um projeto de elevação do nível educacional e cultural do povo brasileiro, sob a pena não apenas de serem derrotados eleitoralmente, mas de legarem ao futuro um país ainda mais conservador, ignorante e truculento do que o que herdaram.

PS do Viomundo: Em Century of the Self, Adam Curtis trata com brilhantismo da rendição dos democratas (sob Clinton) e dos trabalhistas (sob Blair) à marquetagem e trata das consequências políticas. Quem não viu, veja. Vale a pena.

sábado, 12 de novembro de 2011

O rancor contra a USP






O rancor contra a USP - Marcelo Rubens Paiva








“"Além de maconheiro, você deve ser viado.”
Curiosa associação.
Esta é uma das muitas reações de carinho que recebi ao falar do conflito entre alunos da USP e a PM.
Dos mais de 400 comentários abaixo, o índice de reprovação dos acontecimentos é altíssimo.
E, claro, as agressões pessoais foram a tônica dos leitores: sou maconheiro, esquerdóide, analfabeto, autor de um livro só, cujo acidente me deixou paraplégico e burro, e a quantidade de drogas que tomei queimaram meus neurônios.
Uma fofura…
Ou não se entendeu o que queriam afinal os alunos da USP, ou um rancor contra eles domina parte da sociedade.
Percebi como tem gente que acha um desperdício o investimento do orçamento estadual em uma universidade pública.
Uma, não. Três [USP, Unicamp, Unesp].
Frequentadas por “vagabundos, maconheiros, depredadores dominados por correntes da esquerda radical”.
Um desperdício de dinheiro público.
Imaginei que fosse uma unanimidade a proposta de que o Estado deva investir pesadamente em educação, se quisermos dar um passo, sim, de gigante.
Além de vendermos pedras com ferro, soja e alimentar o mundo, poderíamos nos transformar numa força industrial e tecnológica.
Imaginei que a essência de uma Universidade fosse desenvolver o livre pensar.
As mensagens que os estudantes me passaram foram:
1. Esta PM não nos serve.
2. A política de repressão à posse de entorpecentes faliu.
3. A reitoria abriu mão de resolver os seus problemas, como a violência no campus, desistiu e chamou o Estado.
Leitores reclamaram que estudantes da USP não devem ter privilégios, que esta PM é a que temos. E que eles não querem a PM lá para poderem fumar seus baseadinhos livremente.
O governador do Estado reclamou que deveriam ter aulas de democracia.
Mas continuo concordando com os estudantes.
Não é a PM que deveria voltar à escola e aprender a combater o crime?
Esta PM é falida.
Não consegue lidar com os índices alarmantes de violência urbana. A corrupção corrói da base à cúpula. O traficante NEM acaba de declarar que metade dos seus rendimentos ia para a polícia.
Em todas as cidades existe a sua cracolândia, sinal de que, como disse a revista THE ECONOMIST, perdemos a batalha para o tráfico. Como sanar tal doença?
O DCE da USP entregou à reitoria meses atrás a sua proposta para conter a violência: iluminar o campus, descatracalizá-lo, tornar a Universidade aberta e criar uma guarda universitária focada nos direitos humanos.
E reitoria desprezou. Preferiu chamar a força de repressão que fez de São Paulo uma das cidades mais violentas do mundo.
A cobertura de parte da mídia só alimentou o preconceito. Não se debateram ideias, mas a atitude de vândalos.
Prefiro uma Universidade que continue nos propondo novas ideias. Sim, gratuita. Aceito com orgulho que parte dos meus impostos vá para as universidades públicas.
Já estudei em duas e sei muito bem que elas não servem apenas à elite. Que há convênios com países africanos e latino-americanos. Que se estuda as raízes dos problemas e conflitos sociais. Que há núcleos de combate à violência. E que a força dos movimentos sociais é a alma da democracia e da justiça social.
E que numa Universidade livre, governador, repensa-se o papel do Estado.
Nem na época da DITADURA as ações dos estudantes eram unanimes.
Havia uma maioria silenciosa não engajada que não participava.
Isto não quer dizer que ela estava correta.
Muitos diziam que estudantes estavam lá para apenas estudar.
A História prova que dos estudantes veem as ideias de transformação.
É mais vantajoso escutá-los do que trancá-los ou reprimir com “borrachadas”.
No meio estudantil, longe das forças do mercado, nascem as grandes ideias.
Nasce o futuro. "

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

FIM DE PAPO

FIM DE PAPO



É curioso, Adulto, quando acaba de ler um de meus livros com histórias de criança, nunca deixa de comentar:
- Pois é. Mas o meu Serginho diz coisas muito bacanas,também!
Que dúvida! Diz mesmo.
E, ainda com um sorriso de pai realizado, começa a tentar recordar ‘aquela’ que o menino havia soltado outro dia. Quem disse que...? Nada.
E o mais incrível é que, na hora em que o garoto tinha soltado aquela todos eram capazes de jurar que jamais esqueceriam. Todos esqueceram.
E sabem por quê?
É que o humor infantil, o que a criança diz, tem características tão próprias, tão originais, tão suas, que os referenciais do adulto não conseguem fixar com facilidade.
Essa originalidade faz com que o diálogo de adulto e criança mixe tantas vezes. Falam línguas diferentes. O grandalhão do pai quer dialogar dentro de seu próprio repertório, supondo que o do filho é muito inferior. Não é exatamente isso. É diferente. E o mais pitoresco e, por vezes, doloroso até, é que, ao deparar com a dificuldade de se comunicar, seria lógico que o adulto tentasse aprender a fala com seu filho. Sim, senhores. Aprender a falar com o filho.
É que as palavras, as mesmas palavras, significam coisas diferentes para um e para outro. A dose de imaginação não expressa, o turbilhão de fantasia não verbalizada fazem com que duas crianças pequeninas possam se comunicar bem melhor entre elas do que cada qual com seu respectivo pai.
- Que diabo de conversa sem-fim têm esses pirralhos! – explodem os pais.
É que aqueles seres pequeninos parecem ter uma infinidade de segredinhos, de particulares, de confidências e mistérios. Se compreendem mais pelo implícito do que pelo proferido. E o proferido é, quase sempre, o proferido.
Quando aquela coisinha ouviu o protesto de que o açúcar ia estragar os dentes, soltou de imediato:
-Adulto não entende nada de bala!
Quando estamos lidando com amostras de gente que é incapaz, aparentemente, de se comunicar através da palavra, é necessário, mais do que nunca, um voto de confiança e deixar que se expresse de qualquer forma, à sua maneira. E, quando se tem coração de entender criança, não é preciso ser nenhum decifrador de charadas para captar o que ela quer ou sente.
Criança é isso aí, gente! Muita vez quem não sabe falar é o pai, que fala pelos cotovelos, logorreico, verborrágico e não a criança que não abriu a boca nem pra beber água.
O melhor diálogo inicial com uma criança pode ser, simplesmente, pescar a seu lado, silenciosamente, ou passar uma bola para que ela chute em gol.
O diabo é que adulto é danado pra cometer falta máxima. É doutor em pênalti.
Não, meu caro. Acho que ninguém é culpadode cometer erros. Em tese ninguém deveria merecer um cartão vermelho. Em tese, porque a desinformação, nesta era do silicone, também é pecado. Ou não é?”
(Pedro Bloch. Criança é isso aí. Rio de Janeiro: Bloch, 1980. Pp.111-12 )

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"A NETINHA DO ROSA

A netinha do grande Guimarães Rosa é um prodígio de serenidade, simpatia e discrição. Ela quase não fala mas quando o faz é com imensa graça e encanto. Rosa me disse uma vez, analisando-a:
-Ela tem tanta coisa pra dizer que nem precisa falar.
E a respeito de um indivíduo que falava demais sem nada dizer:
- Sabe Pedro? Ele é cheio de coisas vazias, não é?"

Pedro Bloch. Essas crianças de hoje!. Rio de Janeiro: Bloch Editores. 1969/1970. P.27

Esclarecendo o caso USP (pra quem vê de fora)

Esclarecendo o caso USP (pra quem vê de fora).
por Jannerson Xavier, quarta, 9 de Novembro de 2011 às 16:04 (http://www.facebook.com/#!/notes/jannerson-xavier/esclarecendo-o-caso-usp-pra-quem-v%C3%AA-de-fora/2459499642739)

Somos alunos da ECA-USP e visto a falta de imparcialidade da mídia com referência aos últimos acontecimentos ocorridos dentro da Universidade de São Paulo, cremos ser importante divulgar o cenário real do que realmente se passa na USP. Alguns fatos importantes que gostaríamos de mostrar:



- O incidente do dia 27/10/11, quando 3 alunos foram pegos portando maconha, NÃO foi o ponto de partida das reivindicações estudantis. Aquele foi o estopim para insatisfações já existentes.



- Portanto, gostaíamos de explicitar que a legalização da maconha, seja dentro da Cidade Universitária ou em qualquer espaço público, não é uma reivindicação estudantil. Alguns grupos até estão discutindo essa questão, mas ela NÃO entra na pauta de discussões que estamos tendo na USP.



- Os alunos da USP NÃO são uma unidade. Dentro da Universidade há diversas unidades (FFLCH, FEA, Poli, etc.) e, dentro de cada unidade, grupos com diferentes opiniões. Por isso não se deve generalizar atitudes de minorias para uma universidade inteira. O que estamos fazendo, isso no geral, é sim discutir a situação atual em que se encontra a Universidade.



- O Movimento Estudantil, responsável pelos eventos recentes, NÃO é uma organização e tampouco possui membros fixos. Cada ação é deliberada em assembleia por alunos cuja presença é facultativa. O que há é uma liderança desse movimento, composta principalmente por membros do DCE (Diretório Central dos Estudantes) e dos CAs (Centros Acadêmicos) de cada unidade. Alguns são ligados a partidos políticos, outros não.



- Portanto, os meios pelos quais o Movimento Estudantil se mostra (invasões, pixações, etc.) não são decisão de maiorias e, portanto, são passíveis de reprovação. Seus fins (ou seja, os pontos reais que são discutidos), no entanto, têm adesão muito maior, com 3000 alunos na assembleia do dia 08/11.



- Apesar de reprovar os meio usados pelo Movimento Estudantil (invasões, depredação), não podemos desligitimar as reivindicações feitas por esses 3000 alunos. Os fatos não podem ser resumidos a uma atitude de uma parcela muito pequena dos universitários.



Sabendo do que esse movimento NÃO se trata, seguem suas reinvidicações:



DISCUSSÃO DO CONVÊNIO PM-USP / MODELOS DE SEGURANÇA NA USP



A reivindicação estudantil não é: PM FORA DO CAMPUS, mas antes SEGURANÇA DENTRO DO CAMPUS. Os estudantes crêem na relação dessas reivindicações por três motivos:



A PM não é o melhor instrumento para aumentar a segurança, pois a falta de segurança da Cidade Universitária se deve, entre outros fatores, a um planejamento urbanístico antiquado, gerando grandes vazios. Iluminação apropriada, política preventiva de segurança e abertura do campus à populacão (gerando maior circulação de pessoas) seriam mais efeitas. Mas, acima de tudo...



A Guarda Universitária deve ser responsável pela segurança da universidade. Essa guarda já existe, mas está completamente sucateada. Falta contingente, treinamento, equipamento e uma legislação amparando sua atuação. Seria muito mais razoável aprimorá-la a permitir a PM no campus, principalmente porque...



A PM é instrumento de poder do Estado de São Paulo sobre a USP, que é uma autarquia e, como tal, deveria ter autonomia administrativa. O conceito de Universidade pressupõe a supremacia da ciência, sem submissão a interesses políticos e econômicos. A eleição indireta para reitor, com seleção pessoal por parte do governador do Estado, ilustra essa submissão. O atual reitor João Grandino Rodas, por exemplo, era homem forte do governo Serra antes de assumir o cargo.



POSTURA MAIS TRANSPARENTE DO REITOR RODAS / FIM DA PERSEGUIÇÃO AOS ALUNOS



Antes de tudo, independentemente de questões ideológicas, Rodas está sendo investigado pelo Ministério Público de São Paulo por corrupção, sob acusação de envolvimento em escândalos como nomeação a cargos públicos sem concurso (inclusive do filho de Suely Vilela, reitora anterior a Rodas), criação de cargos de Pró-Reitor Adjunto sem previsão orçamentária e autorização legal, e outros.



No mais, suas decisões são contrárias à autonomia administrativa que é direito de toda universidade. Depois de declarar-se a favor da privatização da universidade pública, suspendeu salários em ocasiões de greve, anunciou a demissão em massa de 270 funcionários e, principalmente, moveu processos contra alunos e funcionários envolvidos em protestos políticos.



Rodas, em suma: foi eleito indiretamente, faz uma gestão corrupta e destrói a autonomia universitária.



Você pode estar pensando…



MAS E O ALUNO MORTO NO ESTACIONAMENTO DA FEA-USP, ENTRE OUTRAS OCORRÊNCIAS?

Sobre o caso específico, a PM fazia blitz dentro da Cidade Universitária na noite do assassinato. Ainda é bom lembrar que a presença da PM já vinha se intensificando desde sua primeira entrada na USP, em Junho/2009 (entrada permitida por Rodas, então braço-direito de Serra). Mesmo assim, ela não alterou o número de ocorrências nesse período comparado com o período anterior a 2009. Ao contrário, iniciou um policiamento ostensivo, relugarmente enquadrando alunos, mesmo das unidades nas quais mais estudantes apoiam sua presence, como Poli e FEA.



MAS E A DIMINUIÇÃO DE 60% NA CRIMINALIDADE APÓS O CONVÊNIO USP-PM?

São dados corretos. Porém a estatística mostra que esta variação não está fora da variação anual na taxa de ocorrências dentro do campus ( http://bit.ly/sXlp0U ). A PM, portanto, não causou diminuição real da criminalidade na USP antes ou depois do convênio. Lembre-se: ela já estava presente no início do ano, quando a criminalidade disparou.



MAS, AFINAL, PARA QUE SERVE A TAL AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA?

Serve para que a Universidade possa cumprir suas funções da melhor maneira possível. De maneira simplista, são elas:

- Melhorar a sociedade com pesquisas científicas, sem depender de retorno financeiro imediato.

- Formar cidadãos com um verdadeiro senso crítico, pois mera especialização profissional é papel de cursos técnicos e de tecnologia.



Importante: autonomia universitária total não existe. O dinheiro vem sim, do Governo, do contribuinte, porém a autonomia universitária não serve tirar responsabilidades da Universidade, mas sim para que ela possa cumprir essas responsabilidades melhor.



COMO ISSO ME AFETA? POR QUE EU DEVERIA APOIA-LOS?

As lutas que estão ocorrendo na USP são localizadas, mas tratam de temas GLOBAIS. São duas bandeiras: SEGURANÇA e CORRUPÇÃO, e acredito que opiniões sobre elas não sejam tão divergentes. Alguém apoia a corrupção? Alguem é contra segurança?



O que você acha mais sensato:

- Rechaçar reivindicações justas por conta de depredações e atos reprováveis de uma minoria, ou;

- Aderir a essas mesmas reivindicações, propondo ações mais efetivas?



Você tem a liberdade de escolher, contra-argumentar ou mesmo ignorar.

Mas lembre-se de que liberdade só existe com esclarecimento.

Espero ter contribuído para isso.



Se você se interessa pelo assunto, pode começar lendo este depoimento: http://on.fb.me/szJwJt



Bárbara Doro Zachi

Jannerson Xavier Borges



PS: Já que a desconfiança é com a mídia, evitamos linkar material de qualquer veículo.

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Lucas Tonicelli Falou TUDO!
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Charge: Tentando entender

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Se está escrito, é verdade!

"... com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra NÃO, agora que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos de falso prevaleceu sobre o que chamamos de verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova..." José Saramago - História do cerco de Lisboa. P. 50

domingo, 6 de novembro de 2011

"A CRIANÇA PRODUTORA DE CULTURA

Quando a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico, a ideia de que as crianças vão incorporando-a gradativamente ao aprender ‘coisas’ pode ser revista. A questão deixa de ser apenas como e quando a cultura é transmitida em seus artefatos (sejam eles objetos, relatos ou crenças), mas como a criança formula um sentido ao mundo que a rodeia. Portanto, a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa. Isso não quer dizer que a antropologia da criança recente se confunda com análises do desenvolvimento cognitivo; ao contrário, dialoga com elas. A questão, para a antropologia, não é saber em que condição cognitiva a criança elabora sentidos e significados, e sim a partir de que sistema simbólico o faz.
Os estudos mais interessantes sobre isso são os da antropóloga britânica Christine Toren. Psicóloga de formação, ela é capaz como poucos de fazer dialogar esses dois campos de conhecimento para entender o modo como as crianças figi, com quem trabalha, atribuem sentidos ao mundo. Toren utiliza-se mesmo de instrumentos da psicologia, como a confecção de desenhos temáticos pelas crianças, ao lado dos métodos antropológicos. E sua análise demonstra aquilo que dizíamos acima: que os significados elaborados pelas crianças são qualitativamente diferentes dos adultos, sem por isso serem menos elaborados ou errôneos e parciais.Elas não entendem menos, mas, como afirma, explicitam o que os adultos também sabem mas não expressam.
Tomemos um exemplo disso para entendermos melhor. Toren nos mostra que, em Fiji, há um sistema hierárquico que perpassa todas as esferas de sociabilidade, e que é expresso principalmente pela ocupação do espaço: pessoas de status mais alto sentam acima, mesmo que esse acima nem sempre seja situado em um eixo vertical, mas frequentemente simbólico. O que as crianças de Fiji fazem é inverter a formulação dos adultos: enquanto eles dizem ‘fulano senta acima porque é superior hierarquicamente’, elas dizem ‘fulano é de status superior porque senta acima. Toren nos dirá que isso é uma percepção falha ou incompleta das crianças, mas um modo diferente de falar a mesma coisa. A formulação da criança é completa, e explicita com acuidade a relação entre a ocupação do espaço físico e o status social, expressando o que os adultos não verbalizam. Toren sugere mesmo que estudar crianças é mais do que um novo ramo da antropologia – é importante não só para entendê-las, mas também fundamental para melhor entender as culturas que os antropólogos estudam.
Estudos deste tipo nos mostram, portanto, que as crianças não são apenas produzidas pelas culturas mas também produtoras de cultura. Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida, mas também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. Negá-los, seria ir de um extremo ao outro; seria afirmar a particularidade da experiência infantil sob o custo de cunhar uma nova, e dessa ver irredutível, cisão entre os mundos. Seria tornar esses mundos incomunicáveis.
Alguns estudos atuais falam de uma cultura infantil, ou de culturas infantis. Sugiro que esses termos sejam entendidos e adotados tendo em vista as ressalvas que fiz acima. Ou, mais propriamente, que reconheçamos que falar de uma cultura infantil é um retrocesso em todo o esforço de fazer uma antropologia da criança: é universalizar, negando as particularidades socioculturais. Mais ainda: é refazer a cisão entre mundo dos adultos e o das crianças, e, dessa vez, de modo mais radical. Lembremos mais uma vez a máxima da antropologia: entender os fenômenos sociais em seu contexto. Falar de culturas infantis, portanto, é mais adequado; mas devemos, ainda assim, fazê-lo com cuidado, para não incompatibilizar o que as crianças fazem e pensam com aquilo que outros, que compartilham com ela uma cultura mas não são crianças, fazem e pensam.
É verdade que muitos estudos têm mostrado a importância da transmissão cultural entre crianças. Isso acontece, por exemplo, com brincadeiras infantis, aprendidas não com adultos, mas com outras crianças. Acontece mesmo na escola, nas brincadeiras – às vezes desconhecidas dos adultos que com elas convivem – se fazem e refazem. Embora objeto interesse de observação e análise, isso também não deve ser entendido como uma área cultural exclusivamente ocupada pelas crianças, mas uma das modalidades de produção cultural empreendida por elas. Seremos menos capazes de entender o que elas fazem nessas brincadeiras se não entendermos a simbologia que as embasam, e essa simbologia extrapola o mundo das crianças."

COHN, Clarice. Antropologia da criança. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Pp.33-6

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Ninguém está acima da lei. Mas, quem é ninguém? O que é a lei? Qual é a verdade?

Para deslegitimar o ato de estudantes da USP, que se postaram contra a presença da polícia militar no campus universitário, o governador Geraldo Alckmin sentenciou: “Ninguém está acima da lei”, sugerindo que o ato dos estudantes seria fruto de uma tentativa de obter uma situação especial perante outros cidadãos pelo fato de serem estudantes. Aliás, na sequência, os debates na mídia se voltaram para este aspecto, sendo os estudantes acusados de estarem pretendendo se alijar do império da lei, que a todos atingem.

Muito precisa ser dito a respeito, no entanto.

Em primeiro lugar, a expressão, “Ninguém está acima da lei”, traduz um preceito republicano, pelo qual, historicamente, se fixou a conquista de que o poder pertence ao povo e que, portanto, o governante não detém o poder por si, mas em nome do povo, exercendo-o nos limites por leis, democraticamente, estatuídas. O “Ninguém está acima da lei” é uma conquista do povo em face dos governos autoritários. O “ninguém” da expressão, por conseguinte, é o governante, jamais o povo. Claro que nenhum do povo está acima da lei, mas a expressão não se destina a essa obviedade e sim a consignar algo mais relevante, advindo da luta republicana, isto é, do povo, para evitar a deturpação do poder.

Nesse sentido, não é dado ao governante usar o preceito contra atos de manifestação popular, pois é desses atos que se constroem, democraticamente, os valores que vão se expressar nas leis que limitarão, na sequencia, os atos dos governantes.

Dito de forma mais clara, a utilização do argumento da lei contra os atos populares é um ato anti-republicano, que favorece o disfarce do império da lei, ao desmonte da contestação popular aos valores que estejam abarcados em determinadas leis.

Foi isso, aliás, que se viu recentemente em torno do direito das pessoas se manifestarem, de forma organizada e pacífica, contra a lei que criminaliza o uso da maconha. Todos estão sob o império da lei, mas não pode haver obstáculos institucionalizados para a discussão pública da necessidade ou não de sua alteração.

A lei, portanto, não é ato de poder, não pertence ao governante. A lei deve ser fruto da vontade popular, fixada a partir de experiências democráticas, que tanto se estabelecem pelo meio institucionalizado da representação parlamentar quanto pelo livre pensar e pelas manifestações públicas espontâneas.

E, ademais, qual é a verdade da situação? A grande verdade é que os alunos da USP não estão querendo um tratamento especial diante da lei. Não estão pretendendo uma espécie da vácuo legal, para benefício pessoal. Para ser completamente, claro, não estão querendo fumar maconha no Campus sem serem incomodados pela lei. Querem, isto sim, manifestar, democraticamente, sua contrariedade à presença da PM no Campus universitário, não pelo fato de que a presença da polícia lhes obsta a prática de atos ilícitos, mas porque o ambiente es colar não é, por si, um caso de polícia.

Querem pôr em discussão, ademais, a legitimidade da autorização, dada pela atual Direção da Universidade, em permitir essa presença.

A questão da legitimidade trata-se de outro preceito relevante do Estado de Direito, pois a norma legal, para ser eficaz, precisa ser fixada por quem, efetivamente, tem o poder institucionalizado, pela própria ordem jurídica, para poder fazê-lo e, ainda, exercer esse poder em nome dos preceitos maiores da razão democrática.

Vejamos, alguém pode estar questionando o direito dos alunos de estarem ocupando o prédio da Administração da FFLCH, sob o argumento de que não estão, pela lei, autorizados a tanto. Imaginemos, no entanto, que a Direção da Unidade, tivesse concedido essa autorização. A questão, então, seria saber se quem deu autorização tinha a legitimidade para tanto e mais se os propósitos da autorização estavam, ou não, em conformidade com os preceitos jurídicos voltados à Administração Pública.

Pois bem, o que os alunos querem é discutir se a autorização para a Polícia Militar ocupar os espaços da Universidade foi legítima e quais os propósitos dessa autorização. Diz-se que a presença da Polícia Militar se deu para impedir furtos e, até, assassinatos, o que, infelizmente, foi refletido em fatos recentes no local. Mas, para bem além disso, a presença da Polícia Militar tem servido para inibir os atos democráticos de manifestação, que, ademais, são comuns em ambientes acadêmicos, envoltos em debates políticos e reivindicações estudantis e trabalhistas. Uma Universidade é, antes, um local experimental de manifestações livres de ideias, instrumentalizadas por atos políticos, para que as leis, que servirão à limitação dos atos dos nossos governantes, possam ser analisadas criticamente e aprimoradas por intermédio de práticas verdadeiramente democráticas.

A presença ostensiva da Polícia Militar causa constrangimentos a essas práticas, como, aliás, se verificou, recentemente, com a condução de vários servidores da Universidade à Delegacia de Polícia, em razão da realização de um ato de paralisação de natureza reivindicatória, o que lhes gerou, dentro da lógica de terror instaurada, a abertura de um Inquérito Administrativo que tem por propósito impingir-lhes a pena da perda do emprego por justa causa.

Dir-se-á que no evento que deu origem à manifestação dos alunos houve, de fato, a constatação da prática de um ilícito e que isso justificaria o ato policial. Mas, quantas não foram as abordagens que não geraram a mesma constatação? De todo modo, a questão é que os fins não justificam os meios ainda mais quando os fins vão muito além do que, simplesmente, evitar a prática de furtos, roubos, assassinatos e consumo de drogas no âmbito da Universidade, como se tem verificado em concreto.

Há um enorme “déficit” democrático na Universidade de São Paulo que de um tempo pra cá a comunidade acadêmica, integrada por professores, alunos e servidores, tem pretendido pôr em debate e foi, exatamente, esse avanço dessa experiência reivindicatória que motivou, em ato de represália, patrocinado pelo atual reitor, o advento da polícia militar no campus, sob a falácia da proteção da ordem jurídica.

A ocupação da Administração da FFLCH pelos alunos, ocorrida desde a última quinta-feira, não é um ato isolado, advindo de um fato determinado, fruto da busca frívola de se “fumar maconha” impunemente no campus. Fosse somente isso, o fato não merecia tanta repercussão. Trata-se, isso sim, do fruto da acumulação de experiências democráticas que se vêm intensificando no âmbito da Universidade desde 2005, embora convivendo, é verdade, com o trágico efeito do aumento das estratégias repressoras. Neste instante, o que deve impulsionar a todos, portanto, é a defesa da preservação dos mecanismos de diálogo e das práticas democráticas. Os alunos, ademais, ainda que o ato tenha tido um estopim, estão sendo objetivos em suas reivindicações: contra a precarização dos direitos dos trabalhadores; contra a privatização do ensino público; contra as estruturas de poder arcaicas e autoritárias da Universidade, regrada, ainda, por preceitos fixados na época da ditadura militar; pela realização de uma estatuinte; e contra a presença da Polícia Militar no Campus, que representa uma forma de opressão ao debate.

O ato dos alunos, portanto, é legítimo porque seus objetivos estão em perfeita harmonia com os objetivos traçados pela Constituição da República Federativa do Brasil, que institucionalizou um Estado Democrático de Direito Social e o fato de estarem ocupando um espaço público para tanto serve como demonstração da própria origem do conflito: a falta de espaços institucionalizados para o debate que querem travar.

A ocupação não é ato de delinquência, trata-se, meramente, da forma encontrada pelos alunos para expressar publicamente o conflito que existe entre os que querem democratizar a Universidade e os que se opõem a isso em nome de interesses que não precisam revelar quando se ancoram na cômoda defesa da “lei”.

São Paulo, 30 de outubro de 2011.



*Jorge Luiz Souto Maior é professor livre docente da Faculdade de Direito da USP