Quando recebi, de presente, junto com "Nem sinal de asas" |
"Falta é coisa que a gente sente o tempo todo.Amanhã, eu compro pratos novos. Hoje a mesa já está pronta. Quatro pratos, quatro garfos, quatro facas, quatro copos desempoeirados. Coloquei os remédios de cada um ao lado dos pratos. Ajustei a cadeira de rodas. Comprei couve fresca. Um vinho tinto para fazer um brinde. E uma caixa de pirulitos para a minha alma arranhada." (p.54)
Depois ASSIM, um texto triste, sobre alguém que, cansado das amarguras da vida, decide que o melhor seria acabar com ela. Mas não de qualquer forma, era preciso algum sentimento , nem que fosse apenas nos últimos momentos:
"Eu podia pagar a um estranho. A um pistoleiro (é assim que se diz?), a um sádico , a um psicopata. Não quis. Não quero. Preciso de afeto na morte. De pessoalidade. (...) Anda. Põe logo as mãos no meu pescoço. Isso. Assim. Olha pra mim. Olha, porra! Eu preciso dessas lágrimas. De afeto. De personalidade. Aperta bem. Assim. Assim. Ass..." (p.58)
Outra joia literária é MEMÓRIA DE UMA BICICLETA COM CAIXA, que é na verdade a memória paterna, com "cheiro de pai que foi saudade a vida inteira"(p.71), que é lindamente em trechos assim:
"Funileiro. Era assim queria ser chamado. Encomendou pra mim a pintura das letras. Pra mim. Naquele dia, no degrau da porta. Não dava conta de ler nem escrever, mas queria atrair freguesia. Comprou tinta vermelha. E eu pintei aquele nome esquisito.A cada vez que os anos me trazem à memória a imagem da bicicleta com caixa, o erro de escrita me vem à mente: Funilero. Acho que pai nunca soube. E a clientela também não era lá essas coisas com as palavras.Mas pai nunca soube, mesmo de muita coisa. (...) Nunca soube do que um momento de escolhas faz com o depois." (p.73)
Adiante eu gostei de CADERNO DE MORTES, outro conto que traz a morte como protagonista, quando o narrador elenca os corpos mortos que viu durante a vida, desde a infância, e conclui
"Fico pensando se na minha morte eu também vou chorar. É possível. Eu costumo chorar por estranhos."(p.89)
Como a coletânea de contos aborda muito frequentemente situações da vida feminina, outro momento belo está em AS TRÊS MARIAS, um conto sobre a má influência de um homem, marido e pai, na vida das mulheres da sua família, que começa assim:
"A manhã já vai a meio. Mas tudo é silêncio. Cândida, Maria Inês, Maria Eulália, Maria Regina estão entregues à mudez. E às lembranças. E ao trabalho. A lida doméstica não pode parar. Tudo precisa estar pronto para o velório que começa em pouco tempo. Não há lugar para sons. O homem na sala de jantar, afundado no caixão de madeira entalhada, merece todos os silêncios. José da Anunciação Santos Martins. Marido. Pai.Que em vida arrancou de cada uma delas todas as palavras."(p.94)
"Fez fama de bom amante. Por meio dessa rede de informações invisível que as mulheres mantêm entre si. Foi quando esbarrou em Maria Eduarda numa livraria. Ambos disputando o último exemplar de um livro que, ao final de um cappuccino e de uma conversa animada, já não poderia dizer a quem pertenceria, ou se pertenceria.Em um mês, só havia ela. Em um mês, faziam na cama o que nunca havia feito. Um tipo de química assustadora que ia além de pele e pelos e fluidos. Um arrebatamento sem nome que os isolava numa realidade só deles. (p.102)
Em BALANÇO, conto que achei o mais poético, continuamos a lidar com memórias sentimentais :
"Me ensinaram a chamar de alma esse lugar que dói.(...) Me ensinaram tantas coisas. Que chorar é na cama. Ou no banheiro. Eu choro embaixo do chuveiro. Mas ele chora melhor que eu. Sem soluço. Sem nariz vermelho. Sem inchar as pálpebras. Sem pudor. Chora. Em mim. Comigo. Por mim. E em nossa pororoca desconexa, são dele as águas doces que me dessalgam as margens. Ele chora livramentos. Eu, constrangimentos, ridículos, desatenções, afetos ignorados, amores que morreram, amores que viveram para ser de outros amores. Até que nos calamos juntos. Exaustos. Enfim, uádis (refere-se a leito seco de rio)." (p. 113) (...) Talvez não tivessem me dito que o amor não vem para todos, Que o amor não faz parte de algumas bulas e cardápios. Que o amor não está entre os bálsamos disfarçados nem entre os pequenos alívios.Talvez se tivessem me ensinado a não sentir." (p. 115)
Ao falar Cinthia Kriemier estamos falando de uma grande escritora brasileira contemporânea, quando a lemos, nos dá orgulho. Não apenas porque já foi indicada a grandes prêmios literários, como o "Oceanos", mas especialmente porque é muito comentada nos círculos de discussão da literatura contemporânea, percebo isso ao acompanhar canais literários no Youtube como o "Primeira Prateleira", onde ela é sempre citada com carinho e admiração, inclusive por outros autores. Só tenho a agradecer a Patuá a oportunidade de conhecê-la.