sábado, 27 de junho de 2020

“Yeelen” ( A Luz), Mali, 1987, direção Souleymane Cissé




Sobre a experiência ímpar de acompanhar uma mostra de filmes africanos e ter acesso a uma visada totalmente nova das coisas, da vida, dos lugares e das pessoas, eu sempre falei bastante. Mas quando li aqui as palavras de Janína Oliveira (pesquisadora do Instituto Federal do Rio de Janeiro IFRJ) sobre o que, na verdade,  seria o Cinema Africano, tudo de encaixou: “um cinema feito por africanos, com temas africanos, para um público africano”, diferenciando-se de cinemas apenas rodados em África, ou mesmo uma versão tortamente exterior de africanos ou mesmo daquele continente. Segundo Oliveira, alguns cineastas se enquadraram nesse objetivo inicial da cinematografia africana e até conseguiram assinar uma escola própria de cinema em África, que retratava e propunha questões políticas do continente no cinema, como é o caso do senegalês Ousmane Sembène   do mauritano Med Hondo e até das primeiras obras do maliano Souleymane Cissé. Como outros cienastas africanos, Cissé também foi estudar cinema fora da África, na antiga União Soviética, como mandava o contexto da Guerra Fria e toda a discussão anti colonial

Na cinematografia de Souleymane Cissé , “Yeelen” marca um momento de virada de chave, quando ele deixa um pouco de lado as questões político- sociais e volta-se à temática mais local, filmando a adaptação de uma antiga lenda oral do século XIII. O filme conta a história do jovem Niankoro, interpretado pelo belo bailarino Issiaka Kane:


Sua missão é escapar da maldição lançada pelo seu próprio pai Soma em uma disputa ferrenha, baseada na cosmologia e nas crenças Bambarra. Na história,  Niankoro também tem poderes visionários e na sua busca pelo enfrentamento o pai, consegue salvar uma aldeia, na qual ganha do rei uma esposa, Attou, mas não pode se esconder do enfrentamento final com Soma, o qual resulta um encerramento, mas também em uma semente de futuro. Na imagem vemos a então rainha mais jovem Attou sendo tratada pelo Niankoro por causa de sua infertilidade:

O filme não é tão solar como as aldeias do Senegal de Sembène, até porque ele retrata vários povos e locais, desde regiões mais escuras, como o lugar onde  Niankoro vive com a mãe no começo do filme, lugar menos seco, onde sua mãe se banha no leite, conversando em oração com a “grande mãe” em um ritual belíssimo, onde podemos ver algo que acontece em todo o filme: os corpos negros nus, mas sem erotização, em num contextos ritualísticos ou não, aqueles corpos não são objetificados, apenas são eles mesmos apensa sendo:


 

 Além disso, os lugares do filme apresentam pedreiras douradas, até lugares mais íngremes, como os chãos secos pelos quais viaja até chegar ao reino. Em uma das mais belas cenas do filme,  Em belas cenas de luta é de se observar as pinturas na pele do rosto em laranja, branco e  azul, tornando a cena mais bonita:


No curto período em que Niankoro viveu no reino que ajudou a salvar, reparei que o rei e a sua esposa mais jovem se vestem de panos laranja, como se essa fosse a vestimenta real. Muito bonito. Esta é Attou, uma bela africana:


Na live com Janaína Oliveira, em 27 de junho, foram abordadas algumas questões relevantes, como o fato de, até pelo fato de que Cisé desejava, a partir desta obra, não ser mais visto como cineasta político e não mais apresentar claramente questões graves como o histórico colonizador, mas flertar com a possibilidade de contar outras histórias,  tentar outras formas de resistência, como apresentar mais o “o de dentro” , voltar-se para a cultura Bambará  e, com isso, tentar descolonizar nossa percepção. Isso seria uma outra forma de abordar tema político, mas que para os olhos ocidentais, não trariam questões tão relevantes, afinal ficaria tudo inserido na categoria exótica: África ancestral e bonita,na qual o ocidental não vê maiores significados. No entanto o filme é repleto de símbolos e significados opacos aos olhos de quem não conhece a tradição malinesa, que nunca é explicada no filme, é apenas sutilmente apresentada, compondo uma história que rompe com as conexões necessárias na forma de narrar ocidentais. Não deve ter sido à toa que, desde que comecei a ver o filme, lembrei de Guimarães Rosa: não importa se não entendeu alguma passagem, porque não vou entender muita coisa mesmo,  o importante é continuar a assistir, uma hora alguma coisa ou tudo faz sentido.

 

Com essa montagem que recusa a se explicar, que renega a transparência ocidental, o filme aborda uma questão de fundamental importância local : quando o pai não quer abrir mão do seu poder para deixar ao filho estamos tratando da luta pelo poder entre gerações que, na verdade, significa uma luta para não extinguir as tradições, mas um esforço pela continuidade daquela cultura antiquíssima.

Nesse belo e poético filme vemos ser questionado, o tempo todo, nosso olhar estanque sobre a África tradicional e a ancestralidade, pois ele mostra que existem outras formas de se contar histórias, formas que não precisam, necessariamente, passar pelo filtro colonizador.

 

Eu, pandêmica, na ocasião