sábado, 14 de agosto de 2021

PÁ DE CAL: "O ano em que vivi de literatura" é um livro de muitos incômodos

 

Quando chegou eu feliz sem
saber a viagem ao inferno que seria

Foi o meu segundo livro de Paulo Scott, impossível não ter muitas expectativas depois de Marrom e Amarelo, livro muito sério, preciso e necessário, que me arrebatou e do qual tanto gostei, como comento aqui . Sobre as expectativas, comentei em 1 de agosto, que eram altas:

Eu sei que o tema do romance é o burburinho da cena literária, prêmios, grana, tudo que sobrevive um tanto além da própria Literatura. Espero um texto contemporâneo, com os típicos problemas existenciais e econômicos de escritores. Algo ágil, nada tão profundo, talvez. Mas logo no começo, um agradecimento/epígrafe destacou a palavra chave do livro SOLIDÃO.

Bom, de solidão e suas representações eu muito entendo, achei que ia tirar de letra. Ledo engano.

Contando o que aconteceu ao protagonista Graciliano, um ex professor universitário de História de Porto Alegre,  que tinha alargado tudo para ser escritor e que, no momento da trama, tinha ganho o maior (em dinheiro) prêmio literário do país, é mordido pelo mosquito da fama, se muda para o Rio de Janeiro e passa a sobreviver de sexo casual, festas, bebidas e já não escreve mais. Sim, o enredo do livro contradiz diretamente seu título, ali não há nem vida para que alguém pudesse viver, nem tampouco literatura.

Antes da metade do livro eu não sabia ao certo se estava ou não gostando, mas o desgosto veio num crescendo até o fim: Tinha muito desconforto, em sua maioria vindo do protagonista Graciliano, que é uma figura detestável. Mas como eu tenho uma necessidade irritante de sempre querer gostar dos livros que leio, preciso ao menos tentar, e nem sempre é fácil. Na verdade é um pouco irritante, pois estabeleço uma briga natural com minha formação crítica. Geralmente eu preciso de mais argumentos para não gostar do que para gostar das leituras. Quando não dá certo, como aconteceu com esse livro, que a cada página me colocava mais contrariada com a história e especialmente o protagonista, fiquei um tanto desestabilizada. Era essa a intenção, suponho. Se for mesmo, foi cumprida com sucesso, mas para quê? O que será que eu não entendi? Ou entendi tudo e é essa lástima mesmo? (tô mais achando que é isso )”, me perguntei no Facebook, como faria o faceboquiano Graciliano, de quem eu tanto desgostei.

Em nenhum momento supus que fosse um mau livro, ou não tão bem escrito. Isso nunca. Tanto que realmente mexeu comigo, que tive que escrever sobre ele sem parar (e sem publicar), durante a leitura. Será mesmo insuportável se ver um pouco no mais detestável dos personagens?

O que me incomodava? O egoísmo e machismo dele que despertou algo sombrio em mim: ódio por homens. E mais: ódio pelas mulheres que se envolvem com esse tipo de homem e são tão machistas quanto. E foi piorando porque realizava que, infelizmente, grande parte deles e delas é mesmo assim. Estamos falando do contemporâneo, né? O reflexo desse espelho foi bem feio de eu observar.

Um exemplo é de quando Graciliano vai a um evento literário em um apartamento e narra uma das cenas mais incômodas do livro (tem muitas outras, mas dessa até tive que fazer uns cortes...):

“Entrei no prédio sem querer pedir informação ao zelador da portaria, porque num momento de extrema paranoia achei que não ia ser uma boa ele gravar meu rosto, e, pouco antes disso, ter submetido uma gorduchinha muito bonita a uma situação que podia ser classificada como início de estupro. Justo ela, a gorduchinha muito bonita, a única pessoa pessoa que foi legal comigo naquela festa (...)a que , entusiasmada, me falou que valia muito a pena conhecer a biblioteca dos donos da casa e me chamou para ir com ela descobrir se na biblioteca tinha algum livro meu, e eu já não olhava pro seu rosto, só olhava pros seus peitos balançando no sutiã que o decote em v da camiseta mal escondia (...)tranquei a porta, fui na sua direção, ela ficou paralisada, peguei na sua mão fiz com que segurasse meu pau , ela segurou e em seguida largou, beijei sua boca, ela não reagiu, fiz ela virar de costas, tirei a saia e a calcinha, foi quando ela disse para eu parar, ela se voltou de frente para mim e me empurrou, mas eu segurei seus braços. Então ela perguntou Você vai me estuprar GracilianoAssim que ela disse aquilo, soltei seus braços e, sem pedir desculpas, vesti as calças e sai sem olhar para trás. (...)levando o peso do remorso, um que até aquele momento da minha vida eu nunca tinha experimentado." (p. 58-60)

Essa não foi a única iludida pela ideia de que estar em contato com um escritor sempre seria tudo de bom, poderiam falar de livros e poesia, mas descobriu que, pelo menos aquele escritor, realmente só estava pensando em exagero de sexo e álcool. Mas me identifiquei com ela, a gorduchinha, que quase pagou pelo pecado de ser simpática.

De resto o livro é meio que isso mesmo, descrições de trepadas, como se o narrador estivesse se dirigindo aos amigos de farra: essa é assim, aquela é assado, a outra faz daquele jeito. Isso foi me incomodando tanto, que na metade eu achei que já estava satisfeita. Foi dureza terminar.

Depois fui ver vídeos sobre o livro, como esse ,com o  meu caro Lucas Lazzaretti  , que é bastante elogioso e faz colocações interessantes se pensarmos em projeto literário de Scott no meio literário contemporâneo. Mas é um homem falando... ai então tive acesso a essa matéria, escrita por Mariana Filgueiras e nada mudou muito. Nela Scott fala um pouco das intenções com o livro, era para causar incômodo mesmo. E causou. Espero sobreviver a eles e, sobretudo, manter relação com escritores só a partir dos livros, é bem melhor assim.

Há ainda um ponto a ser abordado nesse livro, a presente ausência de Flavia, que comento aqui