terça-feira, 17 de maio de 2011

O Menino - Benedito Nunes

Em minha pesquisa no arquivo de Guimarães Rosa no IEB, seguindo uma super recomendação da minha amiga Vera eu li este texto sensacional :
Acervo: João Guimarães Rosa
Código de Ref.: JGR-R7,34
Espécie/Formato/Tipo: ARTIGO JORNALÍSTICO
Título: O menino
Localidade: São Paulo, SP BR - Suplemento Literário do Estado de São Paulo
Data: 2/2/1963
Autor(es): Benedito Nunes



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Ei-lo, em grafia de época:





Título O MENINO – Autor Benedito Nunes – Local Suplemento Literário de O Estado de São

Nas Primeiras estórias, de Guimarães Rosa redespontam os temas essenciais de Grande sertão: Veredas e de Corpo de Baile – temas que ganham a dimensão de símbolos que têm o poder sujestivo e a sedução mágica sempre renovaveis, dessas imagens arquetípicas, que unem a criação poetica com a linguagem mítica, o mundo da poesia com o mundo ancestral dos mitos. Um dêsses símbolos é o Menino, de que trataremos ligeiramente, neste artigo.
O Miguilim de O Corpo de Baile reaparece na primeira das Primeiras Estórias – “As Margens da Alegria”. Reconhecemo-lo pela mesma ternura que se espraia por sobre as coisas, pela mesma vida interior em processo de crescimento – a igual descoberta, lenta, sofrida, conquanto radiosa, do mundo em que a alegria e pesar se misturam. Mas a criança de Campo Geral é, agora, simplesmente, o Menino, dotado de uma sabedoria infusa que se vai manifestando, passo a passo, como por degraus de iniciação, estágios de uma aprendizagem (o menino viaja), a começar de cima para baixo, da quietude dos ares durante a viagem de avião, onde nada altera a proximidade da alma, satisfeita consigo mesma, às primeiras desilusões da vida terrena no lugar onde se erguerá a grande Cidade. No alto “as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia previa, benfazeja, em movimentos concordantes”; já embaixo, espaço para a cidade em construção, a discórdia, a desarmonia irrompem. A beleza do peru, avistado pelo Menino, no centro do terreiro, é só um instante de deslumbramento. Tanta imponência – “ríspida grandeza tonitruante”, “colorida empáfia” – não dura senão um átimo. O belo e imperial peru cai sob a faca da cozinha, sacrificando à trivial ocorrência do dia-de-anos do doutor. Então o menino descobre que “entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia”. Descobre também algo hostil, que escapa à sua inteira compreensão e que lhe traz a presença do mal e da crueldade. Pois outro peru, de nenhuma beleza, bicava a cabeça da vítima imponente da véspera, “O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.” Ao menino aturde, por um momento, a negrura em que o mundo parece mergulhar. Mas já do outro lado da tristeza e da ferocidade, no reverso da mesma vida que enegrecera, esplende a luzinha verde do primeiro vagalume – devolução da claridade, da alegria triunfante, recuperando a fealdade, mas a ela unida, como a luz às trevas e o contentamento ao pesar.
Em “Grande sertão:Veredas”, Riobaldo, o jagunço, reclama uma separação entre o bem e o mal: que esses opostos se excluíssem e que de um deles nada permanecesse no outro. “Ao que, concluía ele, vendo que pedia o impossível, este mundo é muito misturado”.No Menino os opostos se conciliam, e deles, por uma espécie de transubstanciação alquímica da alma, ao cabo da qual a vida se renova, ganhando inéditos esplendores, nasce a harmonia superlativa de que falava Heráclito. O Menino tem a ambiguidade dos símbolos: é uma criança qualquer a brincar com o seu macaquinho e é a criança mítica através de quem tudo se ordena, tudo se corresponde, tudo se completa. Em “Os Cimos”, última história do volume, a iniciação se completa. É a segunda viagem. Mais sábio, passando por uma provação (afastaram-no da mãe enferma, que ficara na outra cidade), o Menino assume o que há de passageiro, de efêmero, de contraste na existência. Plana acima do mundo, acima do tempo confundidos, vendo-os fluírem juntos, qual rio em crescimento, onde vogam, decompanhia, coisas boas e más, coisas que ainda não se completaram, e outras que “a gente sabiaque elas já estavam caminhando para se acabar, roídas pelas horas desmanchadas”. A unidade de tudo, a bondade natural das coisas, no sentido que lhe deu Plotino, revela-se no trabalho matinal de um pássaro – o tucano- que visita a árvore fronteira à casa, em horário certo, conseguindo afugentar a mágoa que ele sentia pela mãe enferma, distante. O sol, o dia, a luz, se unificam no pássaro. É impossível separar, tão grande é o poder poético da linguagem ajustada à visão mística do mundo, o vôoo do tucano do despontar do dia, e a aurora se funde, com a emoção do menino, com as saudades do lar materno e com a renovação que nele se opera ao saber que a mãe estava curada. O final dessa narrativa-poema é uma glorificação das coisas e dos seres, um acesso repentino à plenitude do mundo, um êxtase, um rapto da alma. “Eera o inesquecível de repente, de que podia transpassar-se, e a calma, inclusa. Durou um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum, na gente não cabe; paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde – no alpendre do terreirinho das altas árvores...() e no jeep aos bons solavancos... e em toda a parte... no mesmoinstante só...o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôoo, ainda muito mais vivo, entoante e existente- parado que não acabava – do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa”.
Se damos a esse menino, uma dimensão simbólica – que é a infância da alma, a perene descoberta das harmonias ocultas da natureza e da simpatia entre os seres, é por que ele pode ser encontrado em outros momentos da obra de Guimarães Rosa. Assim, em Grande sertão: Veredas, a descoberta do Rio, por Riobaldo, deve-se à intercessão de Diadorim, nessa passagem apenas menino – menino dissemelhante dos outros e que parecia igualar-se ao rio em sua força, em seus segredos e em seu conhecimento do mistério das coisas, incluindo os pássaros. “Um pássaro cantou. Nhambu. E periquitos, bandos passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? () Ele. O menino, era dissemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra nenhuma. Comparável um suave ser, mas asseado e forte – assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível – o senhor represente () Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e sabido e tudo nele era segurança em si”.
Diadorim, ambíguo, menino que é também menina, desperta a alma de Riobaldo, infunde-lhe o desassossego, toque de Eros, que mais tarde, nos longes do Sertão, se converteria em amor. Mas, por outro lado, em Guimarães Rosa, o infante- mítico, que talvez represente a criança divina, andrógina, dos alquimistas, que nasce da conjunção dos elementos opostos, do masculino e do feminino, tem certos poderes estranhos, perturbadores, que resvalam para o diabólico, outro símbolo arquétipo, essencial da obra do autor de Grande Sertão: Veredas. Tal é o caso relatado em “A Menina de lá”, de Primeiras Estórias, a esquisita Nininha, que faz prodígios e encantamentos: “O que ela queria, que falava, súbito acontecia ”. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita”. Em Nininha não importa o sexo. É criança, menino-menina, um arquétipo.
Dentro desse mesmo arquétipo podemos incluir mais outro Menino da história “Nenhum, nenhuma”. Esse outro é uma espécie de confusa reminiscência do passado longíquo – desejo de romper a obscuridade, de clarear o que há de enigmático no começo do ser individual, quando impressões indeléveis se gravam na memória, formando uma primeira versão das coisas vividas que o tempo dilui e afunda na irrealidade. A infância, aqui, é mais do que a etapa inicial da vida: é também uma tentativa de retorno à origem. O Menino encontra-se numa casa de fazenda, descrita nebulosamente – mansão estranha em lugar incerto, em “indescoberto rumo”. E tenta recordar-se, despertar reminiscências, lembra-se de uma infância ignota, mais longínqua, princípio em que se agita a “porção escura de nós mesmos” : “Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguir religar-me: adivinhar o verdadeiro real já vivido. Infancia é coisa, coisa?”
O Menino de “Nenhum, nenhuma” vive na companhia de um Moço, de uma Moça e de um homem triste. Num dos quartos da casa está uma “velhinha velhíssima” da qual a Moça não pode separar-se. É o espectro da morte interposto entre ela e o Moçoque a ama. O menino compreende o amor, que deverá perpetuar-se na memória dos namorados, e também a morte que só aparentemente se opõe ao amor. Ele é a frágil união dos extremos que deveriam tocar-se. “Atordoado, o Menino, tornado quase incônscio, como se não fossem: ele, a Moça, o Moço, o homem Velhone a Nenha, velhinha, - em quem trouxe os olhos”.
Só o Menino consegue vislumbrar a unidade, conciliar os opostos, apagar as diferenças transitórias. Nenha, na sua extrema velhice, regride ao estado de infância. O fim assinala um novo começo. Da morte sai a vida, como na dialética da geração recíproca dos contrários.
Ele não esquece o que os pais já esqueceram; detém a sabedoria que eles perderam, jazendo sepultada na memória. Ao voltar da casa estranha, entrevista em sonho ou reminiscência, na companhia do Moço apaixonado, que obteve o amor da Moça somente para efeito de recordá-lo, volta como se fosse uma alma desgarrada do cortejo dos espíritos puros da alegoria platônica do Phedro, que não tivesse de todo perdido suas asas. Encontra o Pai e a Mãe, e os desconhece: “Vocês já se esqueceram de tudo o que algum dia sabiam”. De súbito sente-se entre estranhos, entre corpos divididos, prisioneiros do tempo, já embotados para sentir o apelo uníssono de Eros e Tanatos. “Por que eu desconheci meus pais – eram –lhe tão estranhos? Jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?. O menino sente-se outro, um estrangeiro também, que pertence a si mesmo e ao mundo ilimitado, não preso a uma topologia terrestre, mas viajor que percorre estações de passagem, - descido à terra por descuido ou desígnio insondável. Foi esse também o destino do rapaz enigmático, da estória “Um moço muito branco” – terceira figuração mítica do menino que veio não se sabe de onde, aparecendo na comarca do Serro Frio, após um terremoto que se deu na noite de novembro de 1872, em Minas Gerais. Comparável a um anjo, o Moço Candido e distante, que em todos acende confiança e afeição repentinas, impõe-se como ser superior em relação ao qual “nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má fadiga constante”. Depois de operar prodígios, o Moço desaparece. “Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas”.
O Menino, a Menina, o Jovem , pertencem ao reino ancestral da Criança Primordial de que nos fala Jung, e que vamos encontrar, também, sob diversas figurações simbólicas, na poesia de Fernando Pessoa . A criança simboliza a renovação da vida, a altitude, a luminosidade, o eterno renascer, no seu significado mítico de Deus-solar, de Criança- divina. No seu significado psicológico profundo é um arquétipo da experiência comum da humanidade, que a linguagem de Guimarães Rosa pôde recriar com a potência evocativa do símbolos poéticos, erguidos na sutil fronteira movediça que mal separa o profano do sagrado.