segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CRÔNICA : MEU PRIMEIRO MAR DE PALAVRAS


Achei aqui uma crônica que eu escrevi para um curso que assisti em 2002, com então 22 anos de idade. Tem quase 10 anos, mas muitas temporalidades nela, vejam: 


MEU PRIMEIRO MAR DE PALAVRAS

"Já sabia que, quando mexo com literatura, meus sentimentos ficam mais à mostra que a razão e eu sempre experimento um pouco mais de mim mesma. O que eu não poderia imaginar é que o curso sobre Gêneros Híbridos seria uma grande coleção de oportunidades de reviver a minha infância.

Desde a primeira aula qualquer coisa que acontecia ali conduzia meu tempo presente aos tempos mais antigos, das sensações mais primeiras de que me lembro: as histórias...os comentários... a imagem de uma árvore carregadinha de pássaros... tudo isso era como uma festa de balões de gás coloridos que iam explodindo dentro de mim e retomando a menina Camila que eu fui.

Sextas-feiras eram dia de ser Camilinha novamente. E nos meus olhos de menina pulavam alegrias infinitas de ouvir histórias sobre os meus primeiros autores: Orígenes Lessa, Lourenço Diaféria, Paulo Mendes Campos... todos eles que moravam nos meus primeiros livrinhos.

E tinha também o Rubem Braga. Com este eu marquei inúmeros encontros e faltei a todos: não li no colegial, não li para o vestibular, não li na faculdade. O Rubem Braga? Eu não conhecia o gosto dele.

Um dia, antes de ir para a aula, eu passei no sebo e, enfim, fui ao encontro de Rubem Braga: eram duzentas crônicas escolhidas num livrinho bem velho, de capa dura e desgastada que eu comprei com muito orgulho de estar sendo uma garota que não faltava mais aos meus encontros literários. E fui ao curso.

Chovia na cidade, chovia tempestades. Antes de pegar o ônibus aconcheguei minha bolsa junto à barriga e cobri o corpo com o casaco: não podia deixar molhar o meu ‘primeiro Rubem Braga’. Tão precioso que eu não aguentei esperar e comecei a devorar o livro ali mesmo, numa emocionada e deliciosa sensação de descoberta.

De repente eu comecei a não enxergar mais nada. Dos meus olhos marejavam lágrimas quentes, lágrimas amigas da chuva que caía lá fora. Eu não estava mais só no ônibus, estava também lá pela página trinta do livro, no meio do mar.

‘A primeira vez que eu vi o mar eu não estava sozinho’. Começava assim a crônica. Eu sabia, essa eu conhecia, conhecia intimamente, mais do que conhecia: eu a amava, desde há muito, desde uma tarde lá muito longe, nos meus oito anos, na terceira série primária.

A professora escrevia na lousa as palavras que, então, eu não sabia serem de Rubem Braga : o menino que nunca tinha visto o mar. Como eu podia esquecer da comoção que aquele texto causou na criança que eu tinha sido? Como eu poderia esquecer aquela semana  inteira que eu passei pensando em como era sem graça ter conhecido o litoral desde recém-nascida e nunca poder saber que encanto era ver o mar pela primeira vez...?

Como eu podia esquecer do meu primeiro texto literário? Não podia.

Mas o tempo, que coisa complexa, faz armadilhas inúmeras: eu me movia entre os oito anos, o tempo do mar e o tempo do ônibus. Neste terceiro a senhora sentada ao meu lado cutucou meu ombro e disse com uma gentileza meio bruta, apontando a minha bolsa sobre a barriga e escondida debaixo do casco:

- Moça, mulher grávida não deve chorar assim, não...mesmo com livro triste.

E eu sorri pensando que ela não poderia saber que aquilo era só o meu presente remodelando o momento exato em que fiquei grávida da minha primeira emoção literária, e que isso era, de certa forma, como ver o mar pela primeira vez."
Camila Rodrigues

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

As crianças e as cores








"A cor é 'nuvem', superfície de deslocamento, linha de fuga no imaginário para divagações laterais, escapa para fora da página, compreende-se que ela suscite a desconfiança dos pedagogos. Em relação à conduta, ela favorece o afastamento; em relação à profundidade ou à verticalidade do sentido, ela ensina o charme do não sentido. Ela desvia as palavras de sua acepção corrente e impede a criança de se tornar semelhante aos 'modelos de moralidade'; ela proíbe a identificação obrigatória, familiar ou pedagógica.(...) De fato, o uso sujo das cores é, por sua vez, algo da ordem do deslizamento mimético pelos improvisos imprevistos do imaginário: lambuzada, imunda, brincando de pintar ou de tatuar o corpo, a criança rejeita, assim, identificar-se com a imagem que se exige dela: ao usar o visível para se tornar invisível aos outros, ela escapa à vigilância deles."
(SCHÉRER, René. Infantis- Charles Fourier e a infância para além das crianças. Belo Horizonte: Autêntica. 2009. Pp. 126-131)

domingo, 21 de agosto de 2011

Felicidade Eterna - José Eduardo Agualusa

Antigamente todos os contos para crianças terminavam com a mesma frase, e foram felizes para sempre, isto depois de o Príncipe casar com a Princesa e de terem muitos filhos. Na vida, é claro, nenhum enredo remata assim. As Princesas casam com os guarda-costas, casam com os trapezistas, a vida continua, e os dois são infelizes até que se separam. Anos mais tarde, como todos nós, morrem. Só somos felizes, verdadeiramente felizes, quando é para sempre, mas só as crianças habitam esse tempo no qual todas as coisas duram para sempre.

José Eduardo Agualusa, in 'O Vendedor de Passados'

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

“EXPERIÊNCIA HISTÓRICA”: O DIA QUE A HISTORIADORA ENCONTRA SEU OBJETO VIVO!

Hoje é dia 19 de agosto - o dia do historiador – mas a gente não costuma ganhar presentes, só que ontem eu ganhei o meu! Eu fui a mesa redonda do lançamento do livro “Justa – Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil”,de Mônica Raissa Schpun, que aconteceu no IEB/USP. Eis o livro:



Foi um prato cheio para qualquer historiador, mas para uma que, como eu, estuda Guimarães Rosa talvez sejam dois pratos transbordando! Isso porque a mesa redonda, além da autora do livro, contou com a professora Sandra Guardini T. Vasconcelos e o senhor Eduardo Tess, filho de Aracy, que foi esposa de Guimarães Rosa. Nesta foto, da esquerda para a direita, vemos a autora Mônica Raissa Schpun, a professora Sandra G.T. Vsconcelos e o senhor Eduardo Tess:



Foi muito emocionante tudo, a pesquisa de 20 anos feita pela Mônica, o orgulho e o reconhecimento de Tess e de todos os outros que lá estavam mostra que algumas vidas, como a de Aracy, tiveram valor inquestionável, tanto que ela recebeu um dos dois títulos brasileiros de “Justos entre as nações”, pelo resgate de judeus durante a segunda guerra mundial. Foi lindo, emocionante, porque alguns familiares de pessoas que foram resgatadas àquela época estavam no lançamento para prestigiarem a autora do livro.

Mas o Sr. Eduardo Tess, que é filho de dona Aracy, a segunda esposa de Guimarães Rosa, levou duas convidadas que me interessaram demais: sua esposa sra. Beatriz Tess e uma de suas filhas, Vera Tess.

Sim, sim, Vera Tess a Verinha, a neta que, como alerta a professora Sílvia Maria Azevedo, era neta adotada, porém tão legítima que era a preferida de Rosa.

Foi uma grande emoção para mim porque as correspondências mantidas por Rosa e Vera e sua irmã Beatriz Helena são um dos meus objetos de estudo no doutorado, então ver que hoje a Vera, que já não é mais a Verinha de três aninhos que a foto acima mostra no colo do Vovô Joãozinho, ela é a doutora Vera, médica psiquiatra do HC de São Paulo!

Fui conversar com ela, claro... eu pensava que estava tendo uma chance que os historadores quase nunca têm, porque nós não costumamos pesquisar “pessoas vivas” ... ossos do ofício! Mas como eu não estava preparada para encontrá-la, embora soubesse que seria minha grande chance e precisava falar algo, mas não sabia o que ... acabei fazendo perguntinhas tolas (como era o contato com Rosa; se ela se lembra dos lápis de cor; se ela era mesmo a neta favorita...) , e ela me respondeu na medida do possível, afinal ela me lembrou de um detalhe que eu (JUSTO EU, QUE SEMPRE ME PREPAREI PARA NÃO ESQUECER DISSO) estava esquecendo na hora: tudo aquilo que eu perguntei ela viveu, sim, mas quando tinha apenas três aninhos, não tinha lembrança nem conhecimento detalhado de tudo aquilo! Ou seja: lá estava eu exercendo o “ofício do historiador” e pisando em terreno fragmentado, novamente, porque o que se passava na cabeça de Verinha e da sua relação com o vovô Joãozinho já não podemos mais saber e o mais interessante, talvez nem mesmo ela possa!

Mas são impressionantes as armadilhas que o tempo nos prega e que nem mesmo os historiadores conseguem fugir sempre... o ofício do historiador é entrar no país das maravilhas como faz Alice e descobrir que a única coisa irrefutável a qual se tem acesso é que nada será tão claro e lógico como gostaríamos, mas que teremos que inventar novas maneiras de lidar com a densidade das temporalidades expressas naquilo que chamamos tão levianamente de passado!

Acho que por enquanto é isso que eu posso comentar, ainda preciso assimilar melhor aquela “experiência histórica” que vivi ontem e que eu acho que está sintetizada nesta foto aqui:

O mais interessante é que temos que interpretá-la em perspectiva, afinal a cena nos mostra mais próxima do nosso olhar a figura de Vera Tess (a moça de blusa cor de rosa) e lá no fundo da sala a figura elegante do seu pai o senhor Eduardo Tess, entre eles temos a imagem de um diálogo estabelecido entre uma parente de um dos resgatados do nazismo pela Sra. Aracy Carvalho (a senhora de cabelos curtos e roupa preta) conversando com a mãe de Vera, a sra Beatriz (a de cachecol vermelho), como se ali naquele momento estivessemos registrando em perpectiva pelo menos três vivências temporais distintas.