Quando eu contei na terapia que tinha entrado no doutorado e ia estudar infância na escritura de Guimarães Rosa minha terapeuta disse mais uma das suas colocações assustdoras (daquele tipo que eu prefiro nem pedir explicação na hora, sabe?)... ela disse apenas:
"-Meus parabéns Camila! Aliás penso que esse seu doutorado vai ser mais um motivo para você rever algumas coisas que ainda estão em aberto sobre sua infância, e isso não é só com você, porque na verdade o que todo mundo passa a vida procurando por algo que ocupe a sensação da mãe na fase intra uterina..."
Na hora eu fiquei com medo desta fala, achei que ela estivesse atropelando um pouco os assuntos, mas acabei me esquecendo, até que esta semana eu li um texto que me fez pensar que talvez ela tivesse razão:
“Indefinível, senão em termos de afastamento, articulação entre sujeito e objeto, entre Um e Outro, a voz permanece inobjetável, enigmática, não especular”. Ela interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma alteridade. Para aquele que produz o som, ela rompe uma clausura, libera de um limite que por aí revela, instauradora de uma ordem própria: desde que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos parcialmente, estatuto de símbolo. O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz que vem de outra parte, El a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda ‘argumentação’ suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta, seu lugar, fora da língua, fora do corpo.
Jogo, ritmo vocálico anterior à instauração de um espaço e tempo mensuráveis, e que só é ‘sentido’ na medida em que esta palavra designa direção e processo: a voz se encontra simbolicamente ‘colocada’ no indivíduo desde o nascimento, significando (por oposição, segundo D. Vasse, ao fechamento do umbigo) abertura e saída. Mais tarde, entrada em conjunção histórica, a criança assimilará a percepção auditiva ao calor e à liberdade anunciados pela voz materna – ou à austeridade protetora da lei, significada pela voz do pai. Experiência equívoca: à imagem em que pesa a presença do significado materno se opõe o iconoclasma da ordem e da razão, mas o equívoco vem de mais longe: no útero a criança, já se banhava da Palavra viva, percebia as vozes e, como se diz, melhor os graves do que os agudos: vantagem acústica a favor do pai, mas a voz materna se ouvia no íntimo contato dos corpos, calor comum, sensações musculares apaziguadoras. Assim se esboçavam os ritmos da palavra futura, numa comunicação feita de afetividade modulada, de uma música uterina que, reproduzida artificialmente ao lado de um recém nascido, provoca imediatamente o sono e, ao lado de uma criança autista (na terapêutica de A. Tomatis), deflagra uma regressão salvadora.
À medida que se afaste o doce ‘não lugar’ pré natal e que tome consistência a sensação de um corpo-instrumento, a voz, por sua vez, se ajustará à linguagem, em vista de uma liberdade. O símbolo vai invadir o imaginário.Pelo menos, subsiste a memória de um engodo fundamental, a marca de um antes, puro efeito de ausência sensorial, que cada grito, cada palavra pronunciada, parece ilusoriamente poder preencher. Tocamos aqui, como penso, nas nascentes da poesia oral.”
"-Meus parabéns Camila! Aliás penso que esse seu doutorado vai ser mais um motivo para você rever algumas coisas que ainda estão em aberto sobre sua infância, e isso não é só com você, porque na verdade o que todo mundo passa a vida procurando por algo que ocupe a sensação da mãe na fase intra uterina..."
Na hora eu fiquei com medo desta fala, achei que ela estivesse atropelando um pouco os assuntos, mas acabei me esquecendo, até que esta semana eu li um texto que me fez pensar que talvez ela tivesse razão:
“Indefinível, senão em termos de afastamento, articulação entre sujeito e objeto, entre Um e Outro, a voz permanece inobjetável, enigmática, não especular”. Ela interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma alteridade. Para aquele que produz o som, ela rompe uma clausura, libera de um limite que por aí revela, instauradora de uma ordem própria: desde que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos parcialmente, estatuto de símbolo. O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz que vem de outra parte, El a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda ‘argumentação’ suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta, seu lugar, fora da língua, fora do corpo.
Jogo, ritmo vocálico anterior à instauração de um espaço e tempo mensuráveis, e que só é ‘sentido’ na medida em que esta palavra designa direção e processo: a voz se encontra simbolicamente ‘colocada’ no indivíduo desde o nascimento, significando (por oposição, segundo D. Vasse, ao fechamento do umbigo) abertura e saída. Mais tarde, entrada em conjunção histórica, a criança assimilará a percepção auditiva ao calor e à liberdade anunciados pela voz materna – ou à austeridade protetora da lei, significada pela voz do pai. Experiência equívoca: à imagem em que pesa a presença do significado materno se opõe o iconoclasma da ordem e da razão, mas o equívoco vem de mais longe: no útero a criança, já se banhava da Palavra viva, percebia as vozes e, como se diz, melhor os graves do que os agudos: vantagem acústica a favor do pai, mas a voz materna se ouvia no íntimo contato dos corpos, calor comum, sensações musculares apaziguadoras. Assim se esboçavam os ritmos da palavra futura, numa comunicação feita de afetividade modulada, de uma música uterina que, reproduzida artificialmente ao lado de um recém nascido, provoca imediatamente o sono e, ao lado de uma criança autista (na terapêutica de A. Tomatis), deflagra uma regressão salvadora.
À medida que se afaste o doce ‘não lugar’ pré natal e que tome consistência a sensação de um corpo-instrumento, a voz, por sua vez, se ajustará à linguagem, em vista de uma liberdade. O símbolo vai invadir o imaginário.Pelo menos, subsiste a memória de um engodo fundamental, a marca de um antes, puro efeito de ausência sensorial, que cada grito, cada palavra pronunciada, parece ilusoriamente poder preencher. Tocamos aqui, como penso, nas nascentes da poesia oral.”
(ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte : ufmg.Pp.15-6)