ESSE TEXTO É UMA DAS COISAS COISAS MAIS A MINHA
CARA QUE EU JÁ LI. Não só porque foi escrito por Milton Hatoum (adoro, vocês
sabem); não só porque, ocasionalmente, sublinha perfil de um mau leitor de Guimarães
que não consegue identificar Grande
Sertão: Veredas como uma obra prima; nem porque cita meu rosiano favorito
Willi Bolle, minha banca e interlocutor para assuntos rosianos na vida, mas
porque o faz associando todos esses pontos a uma leitura desse inferno
negacionista e bolsonarista que estamos vivendo. Vale muito ler
(Publicado originalmente neste
link no Caderno 2, Estadão, 8/01/2021)
“Durante o clima insuportável que precedeu as eleições de 2018, meu amigo desdenhou da minha apreensão.
Esse amigo era um liberal entusiasmado com o Estado mínimo. Certo, mas a implantação autoritária desse Estado-formiga pode resultar em estado de sítio e guerra fratricida. Ia dizer a ele que o Estado-elefante é nocivo, e que o tamanho do Estado deve adequar-se à construção da plena cidadania numa sociedade verdadeiramente democrática. Mas não falei nada: sabia que a ingenuidade dele ia de par com a aversão a qualquer política pública de inclusão social.
Mas era ingenuidade ou ideologia extremista? Ele falava em mérito, em esforço individual, e citava cinco ou sete homens e mulheres que, vindos do deserto da vida, tinham construído uma floresta de fortunas. Esses poucos exemplos o confortavam; 80 milhões de pobres e miseráveis não o inquietavam. E ele mesmo não era exemplo de nada. Levava uma vida de Brás Cubas do século 21: um parasita esnobe e herdeiro improdutivo. Usava sua erudição com uma soberba que, talvez à revelia dele, rebaixava os outros. Gostava de recitar “par cœur” e em francês passagens dos “Ensaios” de Montaigne. Admito que nem mesmo sua pronúncia pedante – promessa do mais ridículo – matava a beleza dos “Ensaios”. Mas às vezes ele era possuído por uma ignorância desavergonhada. Certa vez disse, sem hesitar, que não havia personagens complexas no “Grande sertão: veredas”.
Não quis confrontá-lo. Melhor divertir-se com equívocos aberrantes. E, convenhamos, não se rompe uma amizade por causa de um livro, nem mesmo de uma obra-prima.
Usei os verbos no imperfeito porque só agora meu amigo mudou. O péssimo, o desastrado leitor de Guimarães Rosa está angustiado com a perda de um parente, vitimado pela Covid-19. E arrependeu-se de ter votado num sujeito despreparado, mentiroso e manipulador até o vil populismo, atributos comuns de não poucos políticos. Em todo caso, não há lugar no palácio para os escrupulosos demais. Mas só agora ele assentiu que o palácio foi ocupado por um homem de caráter infame, e que durante o trágico 2020, esse presidente, seus filhos – e bajuladores fardados e à paisana – não pararam de bradar “Vida longa à morte!”.
Não sei se o meu amigo é um caso clínico. De algum modo, todos nós somos. Mas dois anos longuíssimos não é muito tempo para perceber que o ex-militar e ex-deputado federal pratica a mesma vilania há três décadas? Quando esse sujeito fala, anuncia uma mentira criminosa; quando fica em silêncio, pressente-se um malefício.
Minha aversão a polêmicas é tão profunda que ignorei as palavras do meu amigo, mescla de confissão e desabafo. Por que um homem de 58 anos, diplomado por uma famosa universidade estrangeira, não adquirira um naco de discernimento político? Às vezes um diploma é apenas o belo papel timbrado da vaidade.
Ouvi por telefone as palavras do enlutado, que só agora despertou para a infâmia. E despertou com uma severa autocrítica, que me surpreendeu: “Eu não era um verdadeiro liberal, e este governo não tem nada de liberal”.
Não usou essas palavras, e sim uma explosão de injúrias, que escutei com deleite. Depois lhe disse que a autocrítica era uma virtude, e até mencionei, com ironia, nosso amado Montaigne: “Também nos corrigimos tolamente com frequência, assim como corrigimos os outros”.
Desliguei o telefone, abri o livro “Romance de formação” e terminei de ler um ótimo ensaio de Willi Bolle sobre “Berlin Alexanderplatz”. O professor Bolle cita trechos do discurso “Sobre a burrice”, proferido em Viena por Robert Musil, em março de 1937. Um desses trechos é:
“O homem público atuante, desde que está com o poder, diz […] que foi escolhido por Deus e destinado a atuar na História. Isso se mostra sobretudo quando certa camada inferior da classe média – em termos intelectuais e morais – se manifesta protegida por um partido, uma nação ou uma seita e se sente autorizada a dizer ‘nós’ em vez de ‘eu’”.
Era uma alusão ao partido de Hitler, que, em março de 1938, anexou a Áustria ao Reich alemão. Claro, não se deve comparar o nazismo com a destruição que está em curso no Brasil. Mas essas e outras frases de Musil, ditas numa época tenebrosa, talvez nos ajudem a refletir sobre o tempo presente:
“A burrice ocasional de um indivíduo pode facilmente se transformar numa burrice constitucional de todos […] Os exemplos para essa situação saltam aos olhos”.
E como saltam, meu amigo!”
* * *
Milton Hatoum é autor dos romances Dois irmãos, Cinzas do Norte e A
noite da espera, entre outros.