quinta-feira, 17 de abril de 2014

Em memória de Gabriel Garcia Márquez (Gabo)

No foi no dia 17 de abril de 2014 que, aos 87 anos o grande escritor, vencedor do prêmio Nobel de literatura de 1982 pelo conjunto de sua obra, que encheu a América Latina e o mundo de um realismo fantástico! Eu fui muito leitora do Gabo durante toda a vida... especialmente quando estudei os primeiros romances do José Saramago dos anos 1980, que foram diretamente influenciado pelo clima realista mágico do Colombiano:


É assim que vamos contando nossa "história literária" e a minha tem estes nomes em destaque, por isso também que me emocionei de verdade, por gratidão, por saudade antecipada, ao  saber da morte do Gabo... foi o fim de um período de referências fortes  para mim também.Para um "grand finale" eu voltei a me emocionar, como na primeira vez que li ha tantos anos,  o Clássico "Cem anos de Solidão"


diretamente de Macondo, o imenso parágrafo final voltou a me causar arrepios, são assim os grandes livros, é assim a vida, aquela que o próprio Gabo chegou a dizer que  se vive para contá-la, e ele contou lindamente: 

"Em nenhum ato da sua vida Aureliano tinha sido mais lúcido do que quando esqueceu os seus mortos e a dor dos seus mortos e tornou a pregar as portas e as janelas com as cruzes de Fernanda, para não se deixar perturbar por nenhuma tentação do mundo, porque agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade de levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a em sânscrito, que era sua língua materna, e cifrara os versos pares com o código privado do imperador Augusto e os impares com os códigos militares lacedemônios. A proteção final que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante. Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas cantadas que o próprio Mélquíades fizera Arcádio escutar e que, na realidade, eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas por que suas tentativas eram prematuras. Nesse ponto, impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto. Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô concupiscente que deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado o Rio-hancha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intricados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de por fim à estirpe. Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estipes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra."
__________________________
MÁRQUEZ, Gabriel García [Tradução de Eliane Zagury]. Cem anos de solidão. 58ª Ed. Record, Rio de Janeiro, 2005.