domingo, 12 de outubro de 2014

Ver:Amor, de novo, de novo ...

Aqui na minha cabeceira eu estou alternando a leitura de dois livros ótimos de literatura, o japonês "A Casa das belas adormecidas" e o final de "Um tal Lucas" do Cortázar... mas hoje não peguei nenhum dos dois para continuar a leitura, precisei voltar ao "Ver:Amor"... não sei o que eu tenho com esse livro, como ele me atrai! E olha que eu comecei a ler com má vontade, "mais um livro sobre o holocausto", e fui totalmente surpreendida, me faz pensar tanto em coisas sobre História, sobre a vida e sobre a necessidade /função de narrá-la. Abri aleatoriamente :

"Durante anos, depois que meu avô Anshel desapareceu, continuei a cantarolar internamente a melodia da história que ele contou para o alemão. Duas ou três vezes antes de eu viajar para a Polônia, sentei-me, escrevi, fracassei. Lentamente acumulou-se em meu interior um punhado complexo de raiva de mim mesmo e saudade dele, do velho que há anos circula numa história trancada, um navio fantasma que é rejeitado em todos os portos, e eu o único que posso salvá-lo e redimir a história, não sei e não ouso.
Comecei a procurar as obras do meu avô. Remexi em arquivos antigos, entoquei-me em bibliotecas empoeiradas de kibutzim remotos, li jornais velhos que se esfarelavam ao contato de minhas mãos; eram aos meus olhos como afrescos antigos nas paredes da cavernas, que se desintegravam assim que o facho das lanternas de pesquisadores pousavam sobre eles." p. 117

'Venho de tempos antigos' Hilda Hilst

Venho de Tempos Antigos
Hilda Hilst

Deus pode ser a grande noite escura
E de sobremesa
O flambante sorvete de cereja.
Deus: Uma superfície de gelo ancorada no riso.


Venho de tempos antigos. Nomes extensos:

Vaz Cardoso, Almeida Prado

Dubayelle Hilst... eventos.

Venho de tuas raízes, sopros de ti.

E amo-te lassa agora, sangue, vinho

Taças irreais corroídas de tempo.

Amo-te como se houvesse o mais e o descaminho.

Como se pisássemos em avencas

E elas gritassem, vítimas de nós dois:

Intemporais, veementes.

Amo-te mínima como quem quer MAIS

Como quem tudo adivinha:

Lobo, lua, raposa e ancestrais.

Dize de mim: És minha.

Texto extraído do encarte à edição de "Cadernos da Literatura Brasileira", editado pelo Instituto Moreira Salles - São Paulo, número 8 - Outubro de 1999.
Retirado deste site

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito. Hilda Hilst

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado todos os dias
Vestindo, despindo e arrastando amor
Infância, sóis e sombras.
Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.
Dizer que não é mais possível comunicar-me.
(Em todos os lugares o mundo se comprime.
Não há mais espaço para sorrir ou bocejar
De tédio).
As casas estão cheias. As mulheres parindo
Sem cessar, os homens amando sem amar
Ah, triste amor desperdiçado
Desesperançado amor, serei eu só
A revelar o escuro das janelas, eu só
Adivinhando a lágrima em pupilas azuis
Morrendo a cada instante, me perdendo ?
Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Preparo-me e aceito-me
Carne e pensamento desfeitos. Intentemos,
Meu pai, o poema desigual e torturado.
E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.