domingo, 6 de novembro de 2011

"A CRIANÇA PRODUTORA DE CULTURA

Quando a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico, a ideia de que as crianças vão incorporando-a gradativamente ao aprender ‘coisas’ pode ser revista. A questão deixa de ser apenas como e quando a cultura é transmitida em seus artefatos (sejam eles objetos, relatos ou crenças), mas como a criança formula um sentido ao mundo que a rodeia. Portanto, a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa. Isso não quer dizer que a antropologia da criança recente se confunda com análises do desenvolvimento cognitivo; ao contrário, dialoga com elas. A questão, para a antropologia, não é saber em que condição cognitiva a criança elabora sentidos e significados, e sim a partir de que sistema simbólico o faz.
Os estudos mais interessantes sobre isso são os da antropóloga britânica Christine Toren. Psicóloga de formação, ela é capaz como poucos de fazer dialogar esses dois campos de conhecimento para entender o modo como as crianças figi, com quem trabalha, atribuem sentidos ao mundo. Toren utiliza-se mesmo de instrumentos da psicologia, como a confecção de desenhos temáticos pelas crianças, ao lado dos métodos antropológicos. E sua análise demonstra aquilo que dizíamos acima: que os significados elaborados pelas crianças são qualitativamente diferentes dos adultos, sem por isso serem menos elaborados ou errôneos e parciais.Elas não entendem menos, mas, como afirma, explicitam o que os adultos também sabem mas não expressam.
Tomemos um exemplo disso para entendermos melhor. Toren nos mostra que, em Fiji, há um sistema hierárquico que perpassa todas as esferas de sociabilidade, e que é expresso principalmente pela ocupação do espaço: pessoas de status mais alto sentam acima, mesmo que esse acima nem sempre seja situado em um eixo vertical, mas frequentemente simbólico. O que as crianças de Fiji fazem é inverter a formulação dos adultos: enquanto eles dizem ‘fulano senta acima porque é superior hierarquicamente’, elas dizem ‘fulano é de status superior porque senta acima. Toren nos dirá que isso é uma percepção falha ou incompleta das crianças, mas um modo diferente de falar a mesma coisa. A formulação da criança é completa, e explicita com acuidade a relação entre a ocupação do espaço físico e o status social, expressando o que os adultos não verbalizam. Toren sugere mesmo que estudar crianças é mais do que um novo ramo da antropologia – é importante não só para entendê-las, mas também fundamental para melhor entender as culturas que os antropólogos estudam.
Estudos deste tipo nos mostram, portanto, que as crianças não são apenas produzidas pelas culturas mas também produtoras de cultura. Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos; as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida, mas também relativizada: digamos, portanto, que elas têm uma relativa autonomia cultural. Os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. Negá-los, seria ir de um extremo ao outro; seria afirmar a particularidade da experiência infantil sob o custo de cunhar uma nova, e dessa ver irredutível, cisão entre os mundos. Seria tornar esses mundos incomunicáveis.
Alguns estudos atuais falam de uma cultura infantil, ou de culturas infantis. Sugiro que esses termos sejam entendidos e adotados tendo em vista as ressalvas que fiz acima. Ou, mais propriamente, que reconheçamos que falar de uma cultura infantil é um retrocesso em todo o esforço de fazer uma antropologia da criança: é universalizar, negando as particularidades socioculturais. Mais ainda: é refazer a cisão entre mundo dos adultos e o das crianças, e, dessa vez, de modo mais radical. Lembremos mais uma vez a máxima da antropologia: entender os fenômenos sociais em seu contexto. Falar de culturas infantis, portanto, é mais adequado; mas devemos, ainda assim, fazê-lo com cuidado, para não incompatibilizar o que as crianças fazem e pensam com aquilo que outros, que compartilham com ela uma cultura mas não são crianças, fazem e pensam.
É verdade que muitos estudos têm mostrado a importância da transmissão cultural entre crianças. Isso acontece, por exemplo, com brincadeiras infantis, aprendidas não com adultos, mas com outras crianças. Acontece mesmo na escola, nas brincadeiras – às vezes desconhecidas dos adultos que com elas convivem – se fazem e refazem. Embora objeto interesse de observação e análise, isso também não deve ser entendido como uma área cultural exclusivamente ocupada pelas crianças, mas uma das modalidades de produção cultural empreendida por elas. Seremos menos capazes de entender o que elas fazem nessas brincadeiras se não entendermos a simbologia que as embasam, e essa simbologia extrapola o mundo das crianças."

COHN, Clarice. Antropologia da criança. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Pp.33-6