Terminei
de ler o primeiro volume da trilogia “O Lugar mais sombrio”, o chamado “A noite
da espera”. Como fui infectada pelo mosquito do Hatoum, estou lendo tudo o que
ele escreve e me ficou disponível, mas é
claro para mim que a cada leitura iniciada eu ainda procuro aquela sensação que
tive ao entrar em contato com os dois primeiros romances (“Dois irmãos” e
principalmente “Relato de um certo oriente”), que pensei: putz, que livro! Mas
nunca mais cheguei ao resultado almejado.
No entanto a busca continua e a longa noite da espera por um romance
desafiador não tem fim.
Isso tem a ver comigo como leitora, as coisas
que eu procuro em um livro: Sou mais analítica, me interessa o como está
escrito, o grau de poeticidade, as questões propostas pelo enredo. Não sou
crítica literária, só gosto de literatura, inclusive a brasileira, e o Hatoum
chama muito a minha atenção desde sempre, especialmente porque mesmo que nem
todos os livros sejam maravilhosos, ele tem um ou dois que devem ficar na
história da literatura nacional.
Em
um dos seus depoimentos esclarecedores no Youtube, Hatoum disse que o “romance
nasce com fome de forma” e é interessante observar como ele passeia nisso. Falando no “A noite da espera”, propriamente
dito, desde o início ele foi o que eu menos gostei de Hatoum. Não queria ler
sobre o tema do livro, que é o golpe civil militar de 1964 sentido em Brasília
por uma turma de estudantes. Não agora. Não nunca mais? Não sei. O que sei é que não desse jeito que está ali:
em forma de um diário em datas diversas, que reavivam memórias de 1968 até
1972, escrito por um personagem só, o Martim, que é um estudante tão
normalzinho, parece muito um dos meus ex, mais do que eu suportaria, e ler
sobre sua vida universitária me incomoda
muito. Literatura também serve para perturbar.
Sobre essa questão da identificação Hatoum escreve :
“quando alguém se identifica com
uma personagem, parece que não consegue se livrar dela. É como se você quisesse
se livrar de uma mentira em que você acredita.” p. 218
Mas o fato é que o Hatoum está escrevendo a história da sua geração, ou melhor, um romance de formação na sua geração. Eu, como representante de uma futura, não me agrado tanto por ela, é muito longe para eu me identificar, e muito perto para eu me achar algo tão diferente nela. Sou uma péssima leitora desse livro.
Posto isso, é fato que Martim é um jovem homem que sofre pela ausência de mulheres em alguns momentos. Não uma ausência total (isso me incomodou, porque eu sei o que é ausência total e absoluta , eu e a maior parte da população brasileira, que sempre foi separada, dividida, fragmentada: para mim é difícil ser empática com Martim, que sofre como um jovem francês que lê Proust). Mas Hatoum sabe que está escrevendo no Brasil, sobre o Brasil e por isso eu ainda confio nele e sigo lendo a trilogia.
Martim é um personagem em formação naquele período, se forma no teatro, nos livros , trabalha numa livraria, assiste filmes clandestinos, que publica num jornal também clandestino, traduz poesia e tem um mestre - o embaixador Faisão, pai de um de seus amigos, que é aposentado da cerreira diplomática e amargurado, porque sua geração de sonhadores, “progressistas”, foi afastada, agora sente que não serve mais - , então ele “adota” Martim, que lê e traduz os livros indicados, mais do que seu próprio filho, que só lê os livros de direito e é incapaz de entender que a saída, se houver, está nas artes, nesses oxigênios que a gente respira.
A
história de Martim e o embaixador Faisão foi a minha parte favorita do romance.
No apartamento de Faisão, que é mineiro e vive mineiramente em Brasília, come comida mineira, oferece queijo minas com goiabada aos hóspedes e na primeira vez que Martim lá
esteve, em 20 de março de 1970, ele viu alguns quadros na parede: Um Di
Cavalcanti e um busto de uma moça de um pintor que ele desconhecia, mas que tinha (me deixe lamber as palavras saborosas de Hatoum):
“pinceladas leves, com tinta
diluída, davam uma textura meio difusa ao rosto, que parecia animado pelo
desejo. Os lábios ensaiavam um sorriso. O decote sem contornos claros revelava
o volume dos seios, e o pescoço alongado tinha a mesma altivez da cabeça, do
busto e das mãos.O olhar era de festa: talvez uma noite junina, pois no fundo
da pintura um balãozinho subia no escuro, como se fosse escapar da tela sem moldura. Notei
alguns traços desse rosto jovem nas feições da embaixatriz, sentada diante de mim.
Quem seria o pintor?” P. 87
Pois
bem, algumas coisas vão acontecer no romance e a formação do “herói” Martim vai
se moldando, sempre sob a tutela de Faisão e o retrato em seu apartamento vai
saindo da condição de questionamento sobre quem seria o pintor, ou mesmo quem
seria a modelo, para ao final de 1972 , quando ele comenta:
“O olhar do retrato feminino me
atraiu: olhar atento e ambíguo, para dentro e pra fora. E um sorriso quase
imperceptível. Guignard pintara com tons um pouco escuros o rosto da futura
embaixatriz, o branco dos olhos vibrava na tela, e no canto direito superior a
figura de um balãozinho ocre subia na noite junina” p. 220
Ouvindo Hatoum em gravações do Youtube, me lembro que ele disse que o mais importante no romance não é propriamente se a história aconteceu, mas qual a possibilidade dela ter acontecido. Por isso o livro começa com uma foto de uma rodoviária, de um ônibus Brasília – São Paulo, mostrando que essas viagens eram e ainda são possíveis. Por que não aquela?
Também a figura de Faisão é , e foi, possível de ter existido. Fui atrás de um retrato feminino feito por Guignard e encontrei um de uma embaixatriz na década de 1960
Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) é um pintor mineiro, e ele também pintou
a embaixatriz mineira Lucia Flecha de Lima em sua juventude na década de 1960,
quadro leiloado em 2019 com lance inicial de R$ 119 mil. É claro que o quadro não é o mesmo descrito
ficcionalmente no romance, que o
embaixador Faisão não é o embaixador mineiro Paulo Tarso Flecha de Lima, esposo da embaixatriz Lucia, apesar do pintor retratista ser igual. Mas tudo isso dá
uma sensação forte de que a história de Martim e Faisão poderia, mesmo, ter
acontecido.
Isso é uma das graças da literatura de Hatoum. A outra são as incontáveis perguntas sem resposta, que dá mais a sensação de que podia ser vida real, não é mesmo?