terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Marisa Lajolo escreve sobre Pedro Bloch

Ilustração de Mariana Massarani  sobre fala de criança para
o "Dicionário de Humor Infantil" de Pedro Bloch (1998)
Encontrei este artigo de Marisa Lajolo sobre o trabalho de Pedro Bloch com as crianças e publicado na Revista Carta Fundamental em Novembro de 2013:

Pois é: criança diz cada coisa!

É comovente observar o processo de aprendizagem espontânea 
que vivem os pequenos no que respeita a língua e a linguagens
http://www.cartafundamental.com.br/single/show/116
Quem é que não sabe como é que é? Filho, sobrinha, afilhado ou filha da vizinha, todo mundo convive ou conviveu com uma criança. Com uma, com duas, com muitas! Conviveu mais ou conviveu menos, por algumas horas, por alguns dias ou por muitos anos, mas conviveu. Ninguém escapa!
Conviveu, talvez – que sorte! – com uma criança aprendendo a falar. E, fruto dessa convivência, pensou em voz baixa ou comentou com alguém que criança diz cada uma...!
E diz mesmo! Pedro Bloch (1914-2004) foi muito feliz ao dar este título aos textos/livros que escrevia sobre a linguagem infantil. Pois é mesmo verdade: criança diz cada coisa!
E o que elas dizem diz muito, ensina muito – como funciona a cabeça humana no que respeita a línguas e a linguagens. Porque, é claro, cabeça de criança, mesmo de criança pequena, já está programada para aprender aqueles saberes de que se precisa para sobreviver no planeta Terra.
E a linguagem é o mais básico desses saberes. E seu aprendizado, uma das coisas mais fascinantes da vida humana. Por isso é tão bonito e comove tanto observar o processo da aprendizagem espontânea que a criança vive a partir do que ouve à volta dela.
Sabe como?
Assim: faz de conta que estamos com a Paula, mãe da Júlia, uma mineirinha de pouco mais de 3 anos. Júlia ainda não fala os erres nem os chs. Mas fala muito. Fala com a família, fala na escola, fala com as amigas, fala com suas bonecas. Ou seja, Júlia é uma tagarelinha.
Pois outro dia, a mãe ia levá-la para brincar na pracinha e tinha combinado com a vizinha que levaria também a filha dela,  Valentina, grande amiga de Júlia. Saindo de casa, Júlia perguntou à mãe quem mais ia. Meio distraída, arrumando garrafas de água e maçãs na sacola, Paula respondeu:
– A Valentina também vai conosco.
Júlia olhou espantada para a mãe:
– Quem é o Nosco que vai com a gente?
A cena, claro, passou a integrar o anedotário familiar. Pais, tios, avós riram muito com a historinha do Nosco e foram passando adiante. Foi assim que o caso chegou aos ouvidos do Zé Luiz, professor esperto e informadíssimo que, além de rir muito da gracinha da Júlia, dias depois comentou numa reunião pedagógica:
– Às vezes fico pensando que é bobagem a gente achar que não deve ensinar gramática... Não vê que a gente aprende gramática quando aprende a falar uma língua?
Os colegas discutiram, e ele espichou a história:
– Teve o caso da filha de uma vizinha que quando ouviu a mãe falar vai conosco, perguntou quem era o Nosco que ia com elas. Eu acho que ela perguntou isso porque tinha aprendido que o verbo ir + a preposição com vem seguido da indicação da pessoa (ou coisa) que acompanha(va) quem está(va) falando. Acho que menina lembrou que a mãe falava frases como Hoje você vai para a escola com sua tia , ou Seu irmão hoje vai com o pai para a casa do avô,  ou Não vai dar pra ir com o sapato branco porque está chovendo. Júlia ouviu, processou, generalizou e concluiu: deduziu uma regra do português: Nosco era alguém (ou alguma coisa) em cuja companhia (ou com a qual) se ia a algum lugar.
A historinha é exemplar, não é mesmo?
Semana seguinte, reunião pedagógica de novo, foi a vez de Mônica aparecer com a historinha do Fábio, seu sobrinho.  O menino tinha ganho uma fantasia de Batman no aniversário, e a irmã ficou aporrinhando, pedindo emprestada a fantasia.
Foi quando Fábio foi reclamar para a mãe, dizendo que a irmã queria uma fantasia de super-heroia.
Risadas gerais, justificadíssimas, Fábio paparicado.  Ele tinha acabado de dar uma bela lição que deixou Mônica maravilhada: ele tinha, sozinho, deduzido e aplicado a regra de que o feminino, em língua portuguesa, se faz (quase sempre, só quase) substituindo o “O“  final por “A” , ou acrescentando um “A” ao final de palavras que terminam em consoante.
E não é que a regra funciona mesmo muito bem para gato e gata, menino e menina, professor e professora, japonês e japonesa?
Repetindo a frase, substituindo heroia por heroína, a mãe de Fábio mostrou ao menino que as regras do idioma têm exceções. Mas a experiência do menino ensinou que ele sabia que exceções não são tão numerosas que desestimulem o emprego das regras que, na maior parte das vezes, funcionam.
Penso que é a manipulação voluntária de regras e limites da língua que – chamada de criatividade, inventividade – gera textos sensacionais como Marcelo, Marmelo Martelo, de Ruth Rocha, e passagens maravilhosas de Guimarães Rosa, como o trechinho de Grande Sertão Veredas em que o leitor fica sabendo que Neco estrepuliu medroso mais que João Brandão.
Pois não é mesmo que criança e escritor têm cada uma...

Marisa Lajolo é professora, pesquisadora e autora de diversos livros, entre eles, Como e Por Que Ler o Romance Brasileiro