terça-feira, 28 de setembro de 2010

“O riso continua sendo a arma dos impotentes”, diz professor da FFLCH

“O riso continua sendo a arma dos impotentes”, diz professor da FFLCH
Natália Natarelli e Pedro Lucas | Publicado em 24.09.2010 – 371 (set/2010), em pauta

Na seção Em Pauta dessa edição, discutimos a questão dos candidatos pouco tradicionais, como celebridades e figuras consideradas excêntricas ou caricatas, que acabam se transformando em fenômenos de voto e de popularidade. Como muitas dessas personalidades utilizam o humor e a dramaticidade em suas campanhas, o Jornal do Campus entrevistou o professor titular do Departamento de História da USP, Elias Thomé Saliba, que é também autor do livro Raízes do riso, para nos explicar um pouco desse fenômeno que permeia a política brasileira atual.

Jornal do Campus: Historicamente, qual a relação do humor com a política no Brasil? E, mais especificamente, como tem sido essa relação nas últimas décadas?
Elias Thomé Saliba: Ao longo de todo o seu passado, a relação do humor com a política sempre foi muito intensa – talvez mais do que noutros países – porque a história brasileira não cria e não criou nenhuma identidade autentica e duradoura, ela apenas ajudou a segregar, a isolar a maior parte da população – não criou espaços públicos estáveis – mesmo após a Abolição e a República, que prometeram muito e, na realidade, realizaram pouco ou quase nada. Em muitos casos, o riso brasileiro nasceu assim, como que para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira. O brasileiro ri para compensar sua cidadania constantemente burlada. Entre a dimensão formal e pública e o universo tácito da convivência personalista é que se construiu uma fragmentada representação cômica do país, dando ao brasileiro, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtraíra.

Mas há ainda outro aspecto a ser mencionado. A esfera política sempre foi motivo de chacota porque as pessoas que participam da vida pública são iguais a todas as outras no plano individual – e esta diferença suscita ambiguidades que constituem o motor do riso e da piada. Hoje a esfera política é mais sujeita à chacota e ao riso cínico talvez porque os grandes projetos políticos de transformação social mostraram-se utópicos e falharam. Numa época de crise de utopias, as sociedades regridem emocionalmente à sátira, à derrisão e ao humor. As pessoas riem das desgraças alheias, mas também das próprias desgraças. A produção humorística é ambígua. É o doa a quem doer. Não é inocente, é um espelho da sociedade, embora distorcido.

No caso brasileiro tudo isso é muito mais forte porque, como já disse no início, o que caracteriza a história brasileira é a eterna confusão entre as esferas pública e privadas e nossa vocação – que, gradativamente, temos esperança de superar – para tratar tudo emocionalmente, reduzindo as distâncias sociais. Chamamos esta vocação de síndrome de Santa Terezinha. A santa francesa Thereza de Lisieux, se transforma aqui em Terezinha – ou seja, até os santos partilham de nossa vida privada, tornando-se mais próximos de nós. Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, porque temos horror das distâncias sociais, que são enormes. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Queremos transformar o público numa coisa nossa, pessoal. Vem das nossas raízes ibéricas. O brasileiro não resiste muito à seriedade. Quanto Ayrton Senna morreu, menos de 24 horas já circulavam anedotas.

Mas o riso também é a arma social dos impotentes. No decorrer da história, o próprio riso popular permitiu que se criasse, cada vez mais, uma cultura da divergência, ativa e oculta – mostrando como o humor se tornou uma arma política importante contra os regimes repressivos. Se não se pode mudar a história real, muda o sentido dela. O riso, a piada é, essencialmente, alteração de sentido, reversão de significado.

No caso brasileiro, humor e riso compensam também a falta de identidade. Uma sociedade mal costurada, que sempre praticou a exclusão. Brasileiros só se sentem brasileiros em momentos emocionais, rápidos e circunstanciais – quando toca o Hino Nacional, tem jogo da seleção. O humor funciona como o carnaval e o futebol para o brasileiro ter este momento efêmero e emocional de identidade.

Nas últimas décadas isto se acentuou, visto que as promessas trazidas pela redemocratização do país estancaram na corrupção crônica – institucionalizada pela impunidade – numa política social remediadora e na tibieza dos partidos e organizações políticas. O universo político só foi, digamos, mais “espetacularizado” mas continua “estranho” e distante para a maioria dos brasileiros (como se não lhes dissesse respeito). E o riso continua sendo, como em muitos momentos de nossa história, a arma dos impotentes.

JC: Como o senhor analisa a esteriotipação de candidatos, inclusive ligadas ao humor, atualmente, considerando o processo de formação da política brasileira?
ETS: Sempre houve estereótipos – eles constituem parte da própria publicidade eleitoral – e isto desde os tempos mais primitivos da publicidade, quando humoristas criavam versinhos corrosivos ou satíricos na Campanha Civilista em 1910, por exemplo. Agora ele é muito mais intenso devido às exigências de formato da mídia (timming da TV, etc.)

Agora, quando consigo assistir ao horário eleitoral, surpreendo-me, perguntando a mim mesmo: não estamos, afinal, em pleno “país da piada pronta”? Ou como perguntava um espantado viajante alemão, que esteve por aqui no ano de 1913: “se a realidade já é engraçada, como vocês fazem para contar piadas, se não há contraste?”

JC: Quando os votos ainda eram realizados em cédulas de papel, comumente eram escritos nomes que não concorriam à eleição, em especial de personagens e personalidades e com caráter satírico. Como o senhor vê esse fato? O senhor acredita que a motivação para tais votos, em geral, tende mais para o desinteresse político ou para o voto de protesto? Como esse processo se assemelha ou se diferencia do voto em figuras como o Tiririca atualmente?
ETS: Votos em bichos (como o Cacareco, nos anos 1960) ou em figuras cômicas revelam mais um desinteresse do que protesto. É uma reação emocional de indiferença e de impotência que reitera o fato de que ainda não superamos uma ética da irrisão em relação ao espaço público. Sempre houve este tipo de reação na história política brasileira. Quando a UDN lançou o Brigadeiro Eduardo Gomes, nas eleições de 1946, o refrão do candidato não era lá muito sério, pois dizia: “Vote no Brigadeiro, é bonito e é solteiro”. Hoje o espaço político parece mais distante porque foi ritualizado e espetacularizado e, na ausência de verdadeiras lideranças – a maioria delas apóia-se num frágil apelo emocional e populista efêmeros – ganham projeção apenas aqueles que circulam na mídia – não necessariamente política. “Pior que está não fica” – corre o risco de pegar, porque tem um dos melhores “ganchos” da piada que é a auto-ironia ou auto-derrisão… É quase uma meta-piada, diriam os lingüistas…

Mas, uma advertência: quando falo em no riso como parte de uma regressão a uma ética emocional, que dizer que tanto pode ser cordial, risonha e pacífica, como violenta e, nalguns casos, irracional e triste. Minha pesquisa no livro “Raízes do Riso” explorou o lado risonho desta ética emotiva, mas no caso brasileiro é até possível fazer outra pesquisa, que teria até um título parecido – Raízes do Choro.

JC: De que forma o senhor acredita que humor motiva e influencia os eleitores a escolher seus candidatos? Na sua visão, até que ponto a grande presença desses candidatos e o tipo de utilização que fazem do humor contribuem para o debate eleitoral democrático? E que prejuízo trazem? Como o senhor avalia, no geral, a presença desses candidatos num contexto democrático?
ETS: É difícil dizer se contribuiu ou prejudica – seria necessário analisar cada caso e cada situação. O humor é um espelho da sociedade – embora seja um espelho distorcido, caricato. O humor – sobretudo o humor que nasceu com o século XX – possui uma fortíssima vocação para a ambiguidade: se uma piada agrada e gratifica alguns ela acaba por ferir outros – não há remédio. Se fui eu quem escorregou na casca de banana, eu não vou rir… Se o escorregão for de alguém que tem poder (político, pessoal ou qualquer outro) ele não só não vai rir, como vai proibir os outros de rirem.

Por outro lado, o humor, por mais agressivo que seja, incentiva a sociabilidade, sublima a agressão, administra o cinismo e, em alguns casos, estiliza a violência, dissolvendo-a no riso. “Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar”, diz Millôr Fernandes.

Para os indivíduos, a disposição de rir das tolices da humanidade sempre foi considerada pela medicina como um meio de preservar a saúde. (Aliviar o excesso de bílis, ou de adrenalina que, em excesso produz a melancolia e as doenças) Talvez isto funcione para a sociedade brasileira também. (é o rir para não chorar) Porque as pessoas que riem das piadas guardam resíduos de emoções que lhes vão permitir rir das maldades, dos preconceitos e das falcatruas reais. Quando as pessoas não riem é pior, pois os ressentimentos são recalcados. O que talvez explique porque o humor – sob quaisquer de suas formas, pela graça ou pela inteligência – tenha um efeito libertador.
(Jornal do Campus- set 2010)