segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A Chave da memória nas estórias de "Relato de um certo oriente"

Capa de Jeff Fisher, para edição de bolso,
Cia das Letras,  2008

Li "Relato De Um Certo Oriente" (1989) porque, depois de conhecer o excelente "Dois Irmãos"(2000), queria mesmo mergulhar na escrita de Milton Hatoum: cortante e poética. No livro uma narradora (da qual não sabemos o nome), depois de vinte anos vivendo no Sul, volta a sua cidade natal, Manaus e, a pedido do seu irmão caçula, que está vivendo em Barcelona, propõem-se a  lhe  relatar em detalhes como estão as coisas e as pessoas com quem conviveram quando crianças, desde quando sua mãe biológica os deu para serem criados pela matriarca libanesa Emilie e, a partir de então, passaram  a fazer parte da família.

Comecei a ler o romance em 29 de agosto, há menos de um mês,  na sala de espera do Icesp, enquanto esperava minha mãe terminar um tratamento, ai li  o primeiro capítulo e, mesmo conhecendo a escrita de Hatoum, foi um choque,  o tempo todo tive a  certeza de que vou querer  reler, vou querer mergulhar mais naquela densidade,  quando estiver longe de conversas, som de TV, aviso de troca de senha. A escrita de Hatoum é muito trabalho de ourivesaria e nisso me lembra muito Rosa.

Como em Dois Irmãos, somos jogados em Manaus, mas que neste texto a cidade aparece  menos urbana que no outro livro , os lugares que servem de "cenário" a esta história são mais privados, lugares de memória, ou importantes para a família, como a loja A Parisiense, ou a luxuosa casa da matriarca Emilie, onde a narradora passou a infância e que, em certo momento, chama de  "cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954" (p.10)

Sobre a cidade como local público, o curto livrinho, fala pouca coisa, mas um trecho muito lindo, todo ele centrado no rio como elemento principal da cidade  , aparece :
"Eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui .Procurava caminhar sem rumo, não havia ruas paralelas, o traçado era uma geometria confusa, E O RIO ERA O PONTO DE REFERÊNCIA, ERA A PRAÇA E A TORRE DA IGREJA QUE ALI INEXISTIAM" (...) decidi retornar ao centro da cidade por outro caminho: queria atravessar o igarapé dentro de uma canoa, VER DE LONGE MANAUS EMERGIR DO RIO NEGRO, LENTAMENTE A CIDADE DESPRENDER-SE DO SOL, DILATAR-SE A CADA REMADA, REVELANDO OS PRIMEIROS CONTORNOS DE UMA MASSA DE PEDRA AINDA FLÁCIDA, EMBAÇADA. (...)COMO SE EU TIVESSE FICADO MUITO TEMPO NA CANOA. TIVE A IMPRESSÃO DE QUE REMAR ERA UM GESTO INÚTIL: ERA PERMANECER INDEFINIDAMENTE NO MEIO DO RIO. DURANTE A TRAVESSIA ESTES DOIS VERBOS NO INFINITIVO ANULAVAM A OPOSIÇÃO ENTRE MOVIMENTO E MOBILIDADE" (p. 110)
Gosto deste trecho pela bela imagem de Manaus emergindo das águas do rio Negro, que seria o grande ponto de referência de lá, e também gosto da ideia de se colocar numa canoa no meio do rio (seria uma imagem literária da própria vida), que mesmo que você não reme, te leva a algum lugar ...

Mas o livro é sobre memória e narrativa (historiadores piram)  e  nos presenteia com trechos assim 

"...tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte. onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, COMO ALGUÉM QUE ACABA DE ENCONTRAR A CHAVE DA MEMÓRIA. " (p.71)

O livro, portanto, trata de memórias (discurso fragmentado, assim como a narrativa oral), a narradora, além de se lembrar, busca ouvir narrativas de outros, até entre aspas mesmo,  para compor seu "relato", configurado a partir de tantos depoimentos:

"Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil  sobre as outras vozes. Assis os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. "(148)
Mas  como narrar estas memórias? Para compor seu relato de um certo oriente, certo porque é um pedaço dele que floresceu aqui no norte do Brasil, um oriente manauara,  o descendente de libaneses Hatoum, recorre às "1001 Noites" , escrevendo para ela uma  apologia, afirmando que aquelas narrativas orais  já estariam  incorporadas às biografias de tantos (não sei se posso dizer de todos), que não há relatos sobre oriente que escape delas.

 Relato de um certo oriente  me pareceu mais  denso do que Dois Irmãos, a leitura é mais poética e a prosa não é linear exige extrema atenção, tanto que, mesmo com a leitura já concluída, volto a ele, para rever detalhes , pois o que é importante ali, longe de ser  "o que acontece" na trama, o fundamental é mesmo entrar no ritmo daqueles vários relatos (e uma das graças da leitura é  ir descobrindo quem é que está falando agora)... 

Com tempo devo escrever sobre uma "comparação pessoal" entre os dois romances de Hatoum, mas por hora devo alertar que já comprei "Cinzas do Norte" e  pretendo continuar na Maratona do autor.