quinta-feira, 11 de junho de 2020

“Ar-condicionado” , Angola, 2020, direção Fradique


O filme angolano “Ar condicionado” (2020), dirigido por Fradique e produzido pela Geração 80, uma produtora audio visual angolana interessante que, segundo Jorge Cohen, preocupa-se em interagir com imagens e sons de produções do "sul do mundo", que certamente devem diferir do norte do mundo, referências com as quais estamos acostumados. Abaixo um momento da live sobre o filme, acontecida em 10 de junho de 2020, da direita para a esquerda, no alto Ana Camila (mediadora da Mostra), Saymor (jornalista da Mostra), abaixo Fradique e Jorge Cohen (da Geração 80):


O filme conta a história misteriosa de quando muitos aparelhos de ar condicionado começam a cair dos apartamentos na cidade de Luanda e Matacedo e Zezinha, empregados dos prédios, recebem do chefe a missão de recuperarem os aparelhos e com isso chegam até Kota Mino, o proprietário de uma loja de eletrônicos que está montando, secretamente, uma máquina de recuperar memórias.

No início lemos a seguinte explicação sobre que ar e que condicionamento iremos tratar


Alguns pontos me chamaram a atenção no filme, como a figura autoritária do chefe, que ao mesmo tempo em que diz ser o presidente do prédio e é a ele  que os empregados devem respeito, obedece à ordem de uma mulher que o acompanha,  deixando claro que seu domínio vale para alguns.

Sobre Matacedo, que o diretor comentou que é um nome fictício, inventado por causa do seu passado de soldado de guerra, como todos os seguranças dos prédios de Luanda, e refere-se aos que acordavam cedo para comer o “mata bicho” (café da manhã) nos batalhões,  já grisalho e muito magro, e depois ficamos sabendo mais sobre ele quando ele registra suas memórias, mas no começo só sabemos que ele tem problema de audição, certamente consequências da guerra,  tem momentos em que não ouve (e nós também não ouvimos, embora a legenda embutida em inglês nos conte o que estão falando para ele). Ele fica muito ligado nas informações da televisão, que leva para comentar com Zezinha. Dela sabemos alguns fragmentos de história, que veio com a família de perto do mar. Fala muito do pai, da importância do vento que aprendeu com ele, o vento natural, não esse do AC.

Em cenas gravadas na parte superior do prédio, o segurança Matacedo observa algumas manifestações de rappers pensando criticamente sobre heranças e perdas, como se fosse um meta-comentário do próprio filme. Outro comentário pertinente e poético é feito pelo Kota Mino ao comentar a queda dos ACs  lembrar que eles caem, assim como nas árvores, frutos maduros soltam-se dos galhos. Isso é interessante vindo deste personagem, que arma toda uma ligação entre os ACs e os registros de memórias, lembrando inclusive que “sem som não há memórias”.

Além das cenas do prédio, que os realizadores contaram que existe de verdade e fica perto da Geração 80,  é  enorme e velho e, segundo os realizadores, existem aos montes em Luanda, são prédios invisíveis, não saem nas fotos dos postais de Luanda, assim como seus moradores  funcionários, então o filme escolheu registrá-los.

Por muito tempo no filme, a câmera vai andando atrás das personagens, daí vermos claramente suas costas em contraste com o entorno de  uma Luanda feia, em ruínas mesmo, com aparelhos enferrujados nas ruas, como em um futuro diatópico? O que os realizadores negaram, afirmando que aquela é mesmo a Luanda de 2020. Na oficina do Kota Mino, quando este fala da possibilidade de sua máquina reter as memórias através dos ACs, Zezinha duvida, pois no bairro onde mora ninguém tem AC, como retriam as memórias deles? Então Mino explica que as deles “caíram com as árvores”, agora só restaram as dos ACs.  Daí  ele explica que sua máquina de memória é construída com  AC, mas é fundamental que ela esteja preservada e “funcione” em meio às plantas. E aquelas eram as últimas da cidade. Realmente o filme não mostra nenhum verde, só ruínas, fragmentos de vida na metrópole e referências às mídias como televisão e rádio, onde as personagens se “informam” sobre a tragédia que está ocorrendo.  Isso me remeteu aos curtas de afro futurismo que assisti no ano passado.

No mais belo momento do filme, Zezinha e Kota Mino deixam Matacedo sozinho na máquina da memória, que funciona com um AC ligado a um carro, muito ao modo de De volta para o futuro, flerte confirmado pelo diretor Fradique,  e Matacedo fecha os olhos e vamos vendo o carro passear por uma Luanda bonita, de dia, de noite, na chuva, com prédios novos com a seguinte canção, cantada por Aline Frazão, de forma muito sincopada, assim como o filme, a música dá um passo e volta dois, como é o ritmo da memória de Matacedo, mas também uma fala da própria Angola:

quando eu fecho os olhos imagino um país novo

quando eu fecho os olhos eu me lembro de novo

para não me dissolver no cassino da lembrança aperto passo na dança, obstinada dos dias

tudo era bem melhor no tempo em que ainda me vias

tempo tempo tempo, tempo, tempo

de  noite adormece o meu corpo antigo

enferrujado e doído, como um sobrado em ruínas

Sonho para não esquecer e esqueço ao amanhecer

Segundo Fradique, o filme apresenta três lados principais : Matacedo  e seu passado de guerra/ Zezinha e sua praticidade em resolver as coisas apontando para um futuro/ Kota Mino e sua peocupação em salvar o que resta das memórias. Essas três personagens seriam testemunhas daquilo que, nesse momento, se está a perder em Luanda e está sintetizado na imagem dos  aparelhos de ar condicionado que absorveriam as memórias e ficam cheios e pesados, por isso caem. E é importante resgatar as memórias , não deixar que elas se percam. Filme maravilhoso, confiram o trailer:


 

 Para terminar, vale destacar uma história: Quando assisti achei legal o filme, moderrno, intrigante e até divertido. Mas não sei se foi simples assim. Sonhei com ele, um sonho incômodo, acordei com o "ar condicionado", literalmente. Como é solitário assistir a esses filmes e nem poder comentar na hora! Esse filme mexeu  muito comigo, nesses tempos de pandemia.