terça-feira, 25 de agosto de 2020

“Wax Print – 1 tecido, 4 continentes, 200 anos de história”, Reino Unido, 2019, direção Aiwan Obinyan

 

Cartaz do filme

Tudo bem que a primeira parte da Mostra de Cinemas Africanos já acabou, mas sempre que aparecer algum filme africano ou sobre a  África, vou ver e comentar. Adoro.

No caso do documentário Max Print, demorei um pouco para arrumar um tempo e assistir e devo avisar que só consegui fazer isso  de forma bem fragmentada, arrumando mesmo algum tempinho nos meus afazeres, mas consegui terminar antes que ele seja retirado do ar.

O filme trata da história da cineasta e estilista inglesa Aiwan Obinyan, que descobre, através da sua avó nigeriana, que os tecidos ‘tradicionais’ africanos impressos em cera foram uma invenção colonial do Reino Unido e da Holanda. Aiwan, então, se lança em uma jornada em busca da história desses tecidos que ela tanto ama e descobre que esta é composta por uma trama de mandos e desmandos que dizem respeito a África, aos africanos e  sua cultura e as relações de dominação, apropriação e comunhão com outras terras e culturas.  A existência de um tecido que nasceu da própria dinâmica colonial, das suas estampas, comercialização, etc,  pode revelar faces intrigantes da História da Nigéria, da própria África.

O filme lança muitas questões sobre a cultura e as identidades africanas e que tipos de trocas foram sendo feitas, desde a época da colonização até a mais recente invasão dos produtos chineses, que baratearam a produção tradicional.

Eu divido o filme em três grandes partes, que comentarei a seguir:

os tecidos




Parte 1 - Na primeira parte Aiwan mergulha no universo dos tecidos e das estampas, dos processos tradicionais de estamparia a partir da cera, das diferentes imagens e histórias que cada tecido podia contar em diversos lugares de África. É muito bonito, nos dá a  sensação de que estamos em contato com o que poderia ser uma espécie de berço daquela cultura. Mas estamos todos cientes de que , talvez, mesmo essa sensação possa ter sido forjada pelos colonizadores, entretanto estas estamos continuam representando, no mundo todo, o reconhecimento de uma identidade africana.

algumas alunas de costura da avó de Aiwan 

Parte 2 - Na segunda parte Aiwan vai em busca de detalhes das suas próprias raízes na Nigéria, tem uma emocionante conversa com sua avó, que lhe conta sobre como foi quando começou a costurar  e ensinar outras mulher e e meninas a costurar, há muitas décadas e sobre como as alunas eram tantas que ela nem podia se lembrar, individualmente, de nenhuma. Nesta parte conseguimos entender como era quando as mulheres ainda tinham poder de troca , inclusive com os colonizadores,  e como aqueles tecidos  e estampas foram, na verdade, o resultado de um processo de criação entre ambas as partes, ainda que essas roupas sejam usadas, cotidianamente, mais entre as africanas.

o castelo de Elmina

Parte 3 – Na terceira parte a diretora Aiwan e a produtora Natuley Smalle vão em busca da história dos seus antepassados, para tentar responder à pergunta : o que diriam se estivessem diante de seus ancestrais . Nessa jornada chegam até o Castelo de Elimina, um dos locais onde ficavam confinadas as pessoas antes de serem levadas à América ou ao Caribe para serem escravizadas em plantações de algodão. O contato com o doloroso ambiente marcado pelas dores da escravidão as surpreenderam, pois ambas supunham que  sentiram muita raiva, e que seu grito militante em favor das causas negras seria o que mais gritaria naquela visita, no entanto o que elas sentiram foi mesmo muita tristeza, por tudo. Me  identifiquei bastante com as palavras de Natuley Smalle, quando ela se questiona como é possível que negros procurem redenção em igrejas, em religiões organizadas, como se não pudessem ouvir os gemidos e gritos dos seus antepassados enterrados debaixo daqueles prédios. Para ela, e também para mim, não dá para separar as coisas assim. Dureza.

Que filme interessante! Quantas coisas ainda temos que aprender sobre a África!



sábado, 22 de agosto de 2020

ENCONTRO MARCADO COM JANUZ KORCZAK

 


Fui conhecer este autor no pós doutorado, quando assisti a um curso de extensão só sobre ele, com a professora Sarita Mucinic Sarue, que fui muito prejudicado por uma greve violenta e sem fim, mas conforme Sarita foi comentando sobre Korczak eu fui identificando nele tantas semelhanças com Pedro Bloch e todo o ideário de reconhecimento da criança que foi emocionante. Mas eu o "conhecia" desde antes, desde minhas primeiras experiências com crianças, na Escola Lumiar, no Projeto Piá, como se ele fosse um autor base, mas de quem só não sabia a referência. Quando comprei este livrinho, eu já conhecia bem o texto sensacional, lido de outra publicação, mas queria ter essa essa nova tradução, a qual achei muito dura e não gostei nada, mas gostei mesmo foi do prefácio, escrito por S. Tomkiewicz, que me mostrou um Korczak mais próximo, com as tais ideias de uma "nova criança", mais autônoma, mais participante, um ser reconhecido como sujeito da História (inclusive a sua própria), que tanto me encantam. Recentemente escrevi um capítulo de livro (a ser publicado ano que vem), ainda sobre minha pesquisa de pós-doc, sobre o trabalho de Pedro Bloch e as crianças e como ele estaria inserido nesse contexto. Como referência teóricas para o capítulo, elenquei dois pensadores cujo ideário sobre a infância poderiam sustentar Bloch : Walter Benjamin, que conheço muito bem desde o doutorado, e Janusz Korczak, que conheço um pouco e o que conheço corrobora minhas hipóteses. Vejamos um exemplo de como essas ideias de maior autonomia para crianças foram divulgadas por nossos pensadores: entre 1929 e 1932. Walter Benjamin manteve um programa de rádio para crianças berlineses, onde dialogava com elas sobre os mais diversos assuntos, fossem de interesse infantil, fossem de interesse social, seu objetivo era dialogar com esses sujeitos na sociedade. Alguns desses programas foram traduzidos para o português em 2015 e eu até escrevi uma resenha dele. Lindo. Pois não é que, lendo este prefácio, soube que antes, em 1926, também Korczak defendeu "a importância educativa do cinema e do rádio (Programas de Cinema e Rádio para crianças), mas sobre o conteúdo desses programas só saberei quando alguém traduzir do polonês ! kkkkk
Mas estou escrevendo isso porque já faz tempo que o nome Janusz Korczak não me sai da cabeça, preciso fazer alguma coisa com ele. Não sei ainda o que. Mas por enquanto estou tentando aumentar minha pequena biblioteca korczaquiana, uma hora A IDEIA vai aparecer, porque nosso "encontro" está marcado e será definitivo em minha trajetória!

terça-feira, 18 de agosto de 2020

LUTE COMO UMA MENINA

 


LUTE COMO UMA MENINA - Toda essa história tenebrosa da menina grávida me tocou imenso,nem consigo comentar muito. Só quem é mulher, quem já foi menina, quem viveu esse susto de caminhar encantada nesse mundo masculino e violento do adulto, entende o tamanho disso. Tem muita gente que acha que as mulheres (agora até as meninas) no Brasil não tem o direito de serem elas mesmas, de existirem, nem de serem meninas no seu tempo! São sempre as culpadas de tudo. Como podem ver, não tenho ainda uma fala coerente sobre isso tudo, é doído demais. Que tristeza!

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

"Todo Homem precisa de uma mãe": Sobre "Pontos de fuga", de Milton Hatoum


Terminei de ler o segundo volume da trilogia “O Lugar mais sombrio”, o chamado “Pontos de Fuga”, que continua narrando a saga de Martim. Não foi nada fácil de ler, me perdi, reclamei muito e, em muitos momentos, cheguei até a perder as esperanças de gostar do livro. Houve uma ocasião em que o próprio Milton Hatoum, em uma troca de mensagens em um grupo sobre ele do qual ele também participa, me pediu para ter paciência com esse livro, e não é que no final, devo dizer que gostei, especialmente do encaixe com o "A noite da espera"? 

Se no anterior falávamos de um adolescente  ambientado em Brasília, neste volume ele se muda para São Paulo para terminar sua faculdade de arquitetura e vai morar numa república na rua Fidalga, onde conhece um grupo de amigos,  a maioria também estudante de arquitetura, com os quais vai ingressar na vida adulta e tentar sobreviver aos duros tempos ditatoriais. Se no primeiro a narrativa estava mesmo mais centrada em Martim, neste livro ouvimos mais relatos de outros, e a até a imagem do próprio Martim, refletida pela visão dos outros,  foi ficando mais clara aos poucos e como eu já vinha de uma certa impaciência com o rapaz, no começo briguei muito com o livro, não conseguia ter empatia por ele, nem pelos seus amigos, mas Hatoum foi diluindo essa má impressão e ao final já estava entendendo e sofrendo junto com esses personagens, que viveram um dos piores momentos para se viver no Brasil.

Falando do livro, propriamente dito, destaco seu título, altamente relacionado à formação de arquiteto de Hatoum e da  maior parte destes seus personagens, lembro que : 

“o ponto de fuga é a referência no horizonte para fazer as linhas em um desenho e construir uma perspectiva”. 

No romance,portanto, talvez cada uma das personagens, especialmente as que moraram na república da Fidalga, poderia ou deveria representar um ponto de fuga para tentar construir alguma perspectiva, ainda que fosse colocando um questionamento, como faz o personagem Nortista (o melhor da trilogia até agora),  em cena em palco teatral:

“como viver num tempo trágico e numa terra trágica?”(p.160)

***

Uma cena tristemente emblemática da leitura do país experimentada neste romance é quando, em 3 de novembro de 1977,o trapezista Julião, que está se preparando para se exilar, e sofria demais por isso, deita em um sofá na casa dos amigos e fica ouvindo a bela e terrível canção Sargaço Mar, de Dorival Caymmi, como se fosse um lamento de despedida, uma carta de adeus antes de morrer:

"Quando se for esse fim de som
Doida canção
Que não fui eu que fiz
Verde luz verde cor de arrebentação
Sargaço mar, sargaço ar
Deusa do amor, deusa do mar
Vou me atirar, beber o mar
Alucinado desesperar

Querer morrer para viver com Iemanjá"

Então Julião sente uma sonolência, dorme e sonha com:


"o impulso no trapézio volante, o sumiço dos braços do trapezista aparador, 5 ou 6 segundos no espaço, meu corpo bateu na rede de proteção e quando subiu, vi no horizonte a praça dos Três Poderes ocupada por um monte de pessoas de pedra sob um céu de enxofre, parecia uma poeira atômica cobrindo Brasilia" (p.282)

 

Não é fácil MESMO a leitura desse romance, como não foi fácil a realidade que ele procura retratar, justamente na época em que eu nasci, final dos anos 1970! Eu até tinha uma imagem mais positiva de 1979, não pensava em uma horda de desterrados, sequelados por anos e anos de repressão e violência, como encontramos nesse livro, mas ao menos tem uma bela trilha sonora.

                                                ***

Voltando ao Martim, é preciso registar que há momentos em que ele realmente se desespera, como quando Anita comenta com Mariela, na casa da Fidalga, que ele e Dinah estava se esguelando lá em cima, e Mari responde:

 "Dinah está em Londres ou Paris, Anita, Martim conversa com ela, com a mãe, com os livros, com o mundo. Mas sempre sozinho" (p. 168). 

 

Ou então, em uma das cenas mais simbólicas, como quando ele  literalmente  rasga
 

“o desenho do Sérgio San com os pontos de fuga”. (p. 198)

Mas, enfim compreendi bem, para Martim, insustentável é a dor de estar sem suas mulheres - a mãe Lina e a amada Dinah - que aos poucos vão se diluindo e, enfim, acabaram tendo o mesmo final, transforma-se em um só sofrimento,  mais intenso : 

“A dor mais profunda e verdadeira só encontra alívio nos sonhos?” (p.223)

Acho que a resposta a essa pergunta é não. Martim não teve um segundo de alivio, nem em sonho. Sobre sua história, caiu como uma luva a delicada canção "Todo Homem",  do Zeca Veloso  com o seu pai  Caetano Veloso, cantada num falsete cheio de lembranças e esquecimentos:

 “Eu sou cordão umbilical

   Pra mim nunca 'tá bom(...)

  Todo homem precisa de uma mãe...”


 Mas o que perturba, o que Martim define como “lugar mais sombrio da vida” (p. 196) ,é aquilo que é


“impossível lembrar. O esquecimento e a lembrança estavam no centro do monólogo do Martim”. (p. 196)

 

   

Se “amargura” foi a palavra chave de “a noite da espera”, neste volume, as palavras chave são “memória” e “esquecimento”, já que 

“a memória é uma voz submersa, um jogo perverso entre lembrança e esquecimento”(p. 182). 

 

E este jogo foi mesmo muito perverso com Martim, a ponto de fazê-lo surtar de verdade: “Todo homem precisa de uma mãe”.

Dando um pequeno spoiler (que era até um pouco previsível), digo que ao final desde livro ficamos sabendo que, de alguma forma, os três personagens centrais – Martim, Lina e Dinah-  não morrem, pelo menos ainda não, afinal temos mais um volume inteiro para concluir esta saga.

 


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Três canções inesquecíveis da Mostra de Cinemas Africanos 2020 parte I




Depois de comentar filme a filme e fazer até um resumo final, até achei que já tivesse esgotado o assunto da fundamental mostra de cinema que tornou tolerável minha quarentena neste primeiro semestre, porém três canções que ouvi nos filmes não saem mais da minha cabeça.  Gravei as três em MP3 e, de vez em quando, volto a ouvir e me emociono.  Das três, duas são adaptações de poemas e uma foi feita especialmente para o filme. Pena que não sei disponibilizar arquivo MP3 aqui no blog, mas vou comentar pelo menos a letra de cada uma.

Pela ordem em que  apareceram na Mostra, a primeira é “Caminho do Mato”, inspirada no poema de  Agostinho Neto, e apareceu na mostra no filme algolano  Sambizanga (1972), de Sarah Maldoror. 

Segundo a pesquisadora  de cinema angolano Renata Dariva (PUCRS), que participou da mostra, essa música aparece em vários filmes de Angola, como se fosse uma canção nacional. A letra é bem significativa: o caminho do mato é o caminho da nossa vida, da vida do africano, da vida do angolano :

 

Caminho do mato
caminho da gente
gente cansada
Óóó - oh!
Caminho do mato
soba grande
caminho do soba
Óóó - oh!
Caminho do mato
caminho de Lemba
Lemba famosa
Óóó - oh!
Caminho do mato
caminho do amor
do amor de Lemba
Óóó - oh!
Caminho do mato
caminho das flores

flores do amor.

Por nossa sorte, ela é trilha sonora de uma das mais belas cenas do filme está disponível no Youtube e podemos ouvi-la aqui


*

A segunda canção também está em um filme angolano, o “Ar-condicionado” (2020), de Fradique. A canção, originalmente composta para o filme é interpretada por Aline Frazão e se chama Matacedo  , toca na cena em que o personagem Matacedo, um ex soldado lesado de guerra, que entra na máquina de extrair memória em carro , fecha os olhos e vamos vendo o carro passear por uma Luanda bonita, de dia, de noite, na chuva, com prédios novos com a canção, cantada por Aline Frazão, de forma muito sincopada, assim como o filme, a música dá um passo e volta dois, como é o ritmo da memória de Matacedo, mas também uma fala sobre  Angola:


Quando eu fecho os olhos imagino um país novo

quando eu fecho os olhos eu me lembro de novo

para não me dissolver no cassino da lembrança aperto passo na dança, obstinada dos dias

tudo era bem melhor no tempo em que ainda me vias

tempo tempo tempo, tempo, tempo

de  noite adormece o meu corpo antigo

enferrujado e doído, como um sobrado em ruínas

Sonho para não esquecer e esqueço ao amanhecer



Consegui o link para se ouvir a canção, espero que não o tirem do ar, porque não paro de ouvir essa.

*

A última canção aparece no filme "Heremakono - À Espera da Felicidade " (2002), de  Abderrahmane Sissako, que é um filme sobre o sentimento de estrangeiridade em sua própria terra de origem . A canção "Amor à terra natal", que é cantada pelo menino Khatra, é também um  poema de Paul Niger de 1962:


Passarinho que canta

seu amor pela terra natal

vou escolher o que  vai comer

e trazer para você 

Interessante é que o menino é proibido de cantar esta canção, mas canta mesmo assim e é tão lindo que,  mesmo sendo em árabe, eu canto junto em português, como se fosse uma canção originária, que dispensa o significado das palavras.


Poemas, canções, e filmes são as vozes da África, para quem deseja ouvi-la.