terça-feira, 22 de novembro de 2011

Série Encontros : Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro



Renato Sztutman : Você acredita que sua obra possa contribuir para uma antropologia da sociedade brasileira?

Eduardo Viveiros de Castro : Não estou excessivamente familiarizado com a antropologia da sociedade brasileira. Fui fazer etnologia para fugir da sociedade brasileira, esse objeto pretensamente compulsório de todo cientista social do Brasil. Como cidadão, sou brasileiro e não tenho objeção a sê-lo. Ou melhor, para dizer a verdade, frequentemente me vejo sentindo grande vergonha de sê-lo; não faltam motivos, passados como resentes, históricos como cotidianos, para isso. Mas sempre lembro que se fosse natural de qualquer outro país, teria motivos tão bons ou melhores para sentir vergonha, e é isso que me faz não ter realmente objeções ao fato de ser brasileiro. Porque, em última análise, tanto faz. Ser humano, perante os demais viventes, já é complicado o bastante. O que não quer dizer que a consciência de ser brasileiro não me mobilize eticamente, não me interpele politicamente, nem me faça experimentar a mistura ambivalente de sentimentos e de disposições associadas a qualquer pertença objetiva.
Fico aliás pensando que talvez seja nisso que consiste realmente o sentimento de pertencer a uma nação: ter motivos todos próprios para se envergonhar, tão próprios quanto (senão mais que) os sempre lembrados motivos de se orgulhar. Isso quando os ditos ‘motivos’ não são, como suspeito que quase sempre são, os mesmos motivos. Todo orgulho confessa uma vergonha. E toda vergonha clama por (a) pagamento.
Enfim, sou brasileiro e coisa e tal. Raras são as vezes em que penso nisso; e quando o faço, em algumas delas acho até bom. Como disse bem Tom Jobim,ao retornar ao Rio de Janeiro depois de anos morando nos Estados Unidos: ‘lá fora é legal,mas é uma merda; aqui é uma merda, mas é legal...’Grande verdade. De qualquer modo, como pesquisador não acho que seja obrigado a ter como objeto a chamada ‘realidade brasileira’, essa curiosa e intraduzível noção. Não se exige isso dos matemáticos ou dos físicos. Os físicos brasileiros não estão estudando a ‘realidade brasileira’. Estão estudando, salvo engano (meu ou deles), apenas a realidade. Por que um cientista social brasileiro não pode fazer a mesma coisa? O Brasil é uma circustância para mim, não é objeto; entendo, sobretudo, que o Brasil é uma circunstânci para os povos que eu estudo, e não sua condição fundante.” P. 48)