sábado, 16 de fevereiro de 2013

Wisnik fala sobre Abraçaço


O texto doJosé Miguel Wisnik está diponível neste link. Colo aqui:

É foda

O fim do mundo segundo Octavio Paz e o último disco de Caetano Veloso A crença no fim do mundo com base nas predições do calendário maia encontra esclarecimentos inesperados na nova edição do livro clássico de Octavio Paz sobre poesia, chamado “O arco e a lira”. É que o ensaísta mexicano foi quem mais pensou, até onde sei, as diferentes formas de imaginação do tempo nas culturas ocidentais e orientais, antigas e modernas. Para os povos que alimentaram uma visão cíclica de tudo, como os maias e os astecas, o começo e o fim do mundo eram figuras incontornáveis para se conceber o giro do tempo. Segundo Paz, os astecas temiam o fim do mundo a cada 52 anos. E os maias, que não poderiam viver sem datar o fim do mundo, quando a data chegou, o mundo deles já tinha acabado desde muito tempo. A modernidade converteu o tempo circular numa visão linear e progressiva, culminando no Futuro. O tempo moderno, em linha reta, é um tempo idealmente sem fim. Esse mito prevaleceu do século XVIII até certa altura do XX, mas o Futuro, tal como era concebido, como o depositário privilegiado do progresso, também morreu. Sem dispor da imagem do tempo, nem cíclica nem linear, a não ser como resíduos de um tempo extinto, nós, contemporâneos, somos assaltados de novo pelo anúncio da catástrofe cósmica na forma “atroz e grotesca do Acidente”, que ataca como ameaça real e como bobagem. Porque essa volta do fim do mundo não é uma confirmação circular do sentido do tempo, como nos antigos, mas um índice da falência do sentido, enquanto vai se configurando um talvez outro sentido — extraído do fundo desse tempo sem figura, cujo transe estamos vivendo. Só a tolice e a perplexidade explicam a ânsia de encontrá-lo nas extravagâncias de Nostradamus, num códice perdido, num cálculo cabalístico, num antigo calendário. O mundo já acabou muitas vezes, sempre defasado das profecias. Octavio Paz fala dessas questões como poeta, num apêndice de “O arco e a lira” que se chama “A nova analogia: poesia e tecnologia”, escrito em 1967. Para ele, o poema é linguagem rítmica, o ritmo é o fundamento de tudo quanto existe, e a poesia é intuição, encarnada na palavra, das configurações do tempo, seus dilaceramentos e suas conciliações, dentro da história e para além dela. É nessa hora que eu vou dar um salto, para o qual peço a licença do leitor, se parecer brusco demais. Mas é que estou pensando também, todo o tempo, numa situação poética especificamente contemporânea: a do último disco de Caetano Veloso, que completa a trilogia iniciada com “Cê”, sem esquecer o “Recanto” com Gal. Como é sabido, desde “Cê” Caetano adota a sonoridade mais seca e contundente da banda, que lhe abre novos públicos e desagrada a outros que lhe eram cativos. Independentemente disso, o que me interessa dizer envolve a composição: as melodias são mais retas, as linhas melódicas mais repetitivas e menos expandidas, as letras ou muito diretas e desmetaforizadas ou alusivas, enigmáticas e, no limite, ostensivamente charadísticas, embora ainda assim inteligíveis. O projeto começou com a ideia de escrever como um outro: Caetano ia lançar “Cê” sob a autoria de um heterônimo pseudônimo. O disfarce acabou não se dando literalmente, mas pôs de fato em circulação um heterônimo cancional, isto é, uma dicção diferente daquela a que se estava acostumado. O que trazem essas escolhas rítmicas potentes, esses timbres crus, essas melodias descarnadas, embora várias vezes pungentes no grão da voz, e essas palavras que criam equações semânticas cheias de incógnitas de vários graus, mesmo quando condensadas em frases que são gestos nítidos, como “a bossa nova é foda” ou “o império da lei há de chegar no coração do Pará”? Com esse desilusionismo poético e sonoro Caetano está mergulhando fundo e como nunca no coração do niilismo. Isso pode ser a expressão de uma experiência pessoal, mas nunca num poeta como esse a pessoalidade deixa de arrastar consigo o sentimento e a intuição do mundo. Há um “cansaço do eterno mistério”, uma entrega do destino ao “grão-senhor” que é o acaso, e uma relativização pragmática do poder sublimador da arte. “Tédio, horror e maravilha” fazem seu giro perturbador em torno da recorrente pergunta banhada na tristeza: “por que será que existe o que quer que seja?”( “Estou triste”), que ecoa “viver é um desastre que sucede a alguns” (“Tudo dói”). Mas a percepção da raça humana indecodificável, que enfrenta a falência do sentido, desde dentro, é expressão daquele transe trágico de que eu falava antes, onde já se engendra outra coisa, extraída do fundo desse tempo sem uma clara figura do tempo. “Quem e como fará/ com que a terra se acenda/ e desate seus nós?” As canções finais vão se encaminhando para as afirmações contingentes e absolutas do amor. Sempre. Um abraçaço. Leia mais sobre esse assunto em O Globo .