domingo, 26 de agosto de 2012

Mais de Le Clézio


“Ujine imagina que, em toda aquela cidade, talvez exista alguém que pense nela. Samuel, do tamanho de uma ameba, do tamanho de uma cabeça de alfinete. Se ela o chamasse, se gritasse seu nome, será que ele escutaria? Se pensasse nele intensamente , comprimindo as têmporas nas mãos, será que ele se mexeria na cama, durante o sono, e olharia na direção do horizonte? Ele a veria nos seus sonhos?
De repente, a uma pontada no epigástrico, ela se dobra ao meio.  Não contava com isso agora, a lembrança chega com violência, domina-a, sufoca-a. Gemendo um pouco, ela sente lágrimas subindo de todo o seu corpo para transbordar em suas pálpebras e escorrer para a boca. Com Samuel, ela está naquela estrada que serpenteia na bruma ao longo do mar do Norte, atravessando as colinas de eulálias. Lembra que nem sabia esse nome, chamava aquilo de capim, e Samuel tinha explicado, dando até mesmo o nome latino , que era planta do Japão ou da China. Um nome tão delicado, eulália, ela achou lindo. Samuel parou o carro numa clareira, no final da estradinha de terra. Juntos, através do para-brisa crivado de gotinhas, os dois espiam os retalhos de bruma a rodopiar entre as plantas. A luz do dia que amanhece pincela o céu de um brilho intenso, multiplicado pelas gotas de orvalho.Os talos altos, leves, flexíveis, estão imóveis e exultam. Não há barulho ao redor. Ujine, ouvindo a vibração do coração, encosta o ouvido no peito de Samuel para escutar o ritmo que está na mesma cadência, uma batida breve, outra mais longa... É um momento de felicidade que ela acredita jamais ter acontecido antes. Pensa em tantos anos de solidão, na morte da mãe no hospital, na angústia de te de trabalhar, ter de encontrar um lugar no mundo. Ela não fala nada, ele também fica calado, ela sabe que o ama e que é amada por ele, está certa disso, quele instante, fora do mundo, fora do tempo, nada jamais poderá apagar.” 

sábado, 25 de agosto de 2012

O amor a partir do pé, por J.M.G. Le Clézio


UM TRECHINHO QUE EU EU GOSTEI :

"Impossível raciocinar a respeito. Tornado elástico, o próprio chão se levantava, milhões de molinhas, milhões de bolhas, as articulações quentes, a corrente elétrica que atravessava seu corpo, que passava por suas pernas, pelos braços, e ao andar ela ia abrindo e fechando as falanges para melhor sentir sua liberdade, sorria para as pessoas que a tomavam por louca.

Ela se espantava. Então o amor era isso? Uma espécie de auréola sobre sua cabeça, uma espécie de carapaça invisível, sentia-se muito abrigada, no âmago, ela se sentia invencível. Um fluido, ela dançava."

 História do pé. J.M.G. Le Clézio. iN: História do pé e outras fantasias. p.20

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Uma antologia dos bilhetes que as crianças italianas mandavam ao Menino Jesus




No Natal de  2008 Elias Thomé Saliba publicou esta resenha de um livro interessantíssimo, especialmente para historiadores que se dedicam a infância e história, como eu:

''Quero seu autógrafo, eu faço coleção''
Editora italiana reúne em antologia bilhetes enviados por crianças a Jesus
Elias Thomé Saliba

E, na Itália, Jesus desbancou o Papai Noel como patrono de tantos pedidos, sonhos e esperanças infantis. É o que se conclui depois que a Editora Sonzogno anunciou a publicação da terceira antologia que reúne as melhores cartas que as crianças italianas, de até 11 anos, escreveram, no final de 2007, ao menino Jesus - Querido Jesus, Poderia Tirar o Gosto de Alho do Aspargo? (Caro Gesu, Potresti Cambiare il Sapore Agli Asparagi?, Sonzogno, R$32). Cartas de crianças nos levam sempre a desconfiar: será que os pais não "ajudaram" na tarefa? A reprodução fiel dos manuscritos, sem nenhuma intervenção gráfica, elimina tais dúvidas. Seguindo o mesmo formato adotado em todos os volumes, os editores reproduziram os cem melhores bilhetinhos, mantendo fielmente os erros e a hesitante caligrafia original, incluindo os desenhos rabiscados pelas crianças. A tradição de enviar pedidos escritos para o menino Jesus é, entretanto, bem mais disseminada do que parece - pelo menos em países de tradição cristã. Desde 1950, em várias cidades da Áustria, o sistema de correios chegou a criar até uma seção especial - o "Correio do Menininho Jesus" (Christkindl Postamt) - aberta apenas nos três últimos meses do ano, que recebe milhares de cartas de crianças. Mas até agora, ninguém tinha realizado um trabalho editorial tão apurado, transcrevendo e coligindo, com paciência, tato e delicadeza, os bilhetinhos espontâneos escritos pelas crianças. 



Revelando uma lógica pertinaz e inusitada, a grande maioria dos bilhetes não se limita às costumeiras solicitações de brindes e presentes - embora comecem quase sempre com pedidos diretos e imediatos, como: "Querido Jesus, por favor, me mande o seu autógrafo. Faço coleção. (Cristina)". Ou então, aproveitam a deixa para incluir também um pedido de presente: "Querido Jesus, quero pedir-lhe apenas uma coisa: mais paz no mundo! E, aproveitando o embalo, um par de tênis novos no Natal. Beijos. (Edoardo)". Já o menino Carlo, de 10 anos, imaginando Jesus como seu parceiro de futebol, em vez de pedir, apenas oferece o que tem nas mãos: "Querido menino Jesus, posso mandar-te a nova tabela no campeonato italiano?".




Nos limites de sua linguagem - de uma honestidade quase chocante, pois ignoram malícias veladas ou desvios metafóricos -, muitas crianças preocupam-se, à sua maneira, até mesmo com os mistérios da onisciência divina. Como Aleksandra, que pergunta: "Querido Jesus, você comparece em todos os casamentos ou só em alguns?". Ou Manu, de 10 anos, que interroga: "Querido menino Jesus, você vê tudo mesmo, como na televisão? Há um canal só para Roma, onde eu moro?". Já Eleonora, livrando-se, por antecipação, de ser tachada de enredeira, escreve: "Caro Jesus, o que você faz com aqueles que não vão à missa? A família de um amigo meu não vai mais. Mas não te digo o nome dele de jeito nenhum". E por fim, uma menina de Milão, Débora, incapaz de esconder um certo exibicionismo, desafia: "Querido Jesus, você era poderoso quando caminhava sobre a água, mas devia mesmo ver-me quando estou esquiando!". 




Muitas cartinhas expressam o desejo de que Jesus intervenha apenas como um simples mediador. Como Martina, que escreve: "Querido menino Jesus, minha avó morreu ano passado, e meu pai disse que este assunto é contigo. Por favor, poderia entregar-lhe esta carta?"; e emenda logo com um outro bilhete, que diz: "Querida Vovó, a escola é boa e tenho muitos amigos. Portanto, tudo vai bem. Um beijão". Longe das trivialidades consumistas, as frases curtas, cerradas, incisivas, revelam uma renitente intensidade afetiva, quando não uma lógica que beira ao implacável: "Querido menino Jesus, diga-me: os santos ainda existem ou já foram extintos, como os dinossauros?". "Meu jesuscristinho, com que cara ficamos quando você faz um milagre? Não te dá vontade de cair na risada?". Mas há também aquelas que dispensam quaisquer mediações e pedem apenas um gesto de boa vontade, como Carlotta, que relata seus sonhos: "Querido Jesus, sonho sempre contigo. Te reconheço porque está sempre com a sua auréola e sempre pescando. Da próxima vez que apareceres, será que poderia me acenar?". 




É bem possível que teólogos sisudos venham a torcer o nariz diante de tantas puerilidades. É possível também - a um leitor com pendores voltairianos - ironizar, assegurando que tudo isto não passa de uma "correspondência passiva" de Jesus, que permanece em silêncio diante de tantas perguntas e nos deixa na dúvida e na resignação. Já um leitor de Pascal provavelmente argumentaria que as próprias perguntas das crianças já trazem, em si mesmas, a insondável presença divina. Seja como for, suas frases simples e tocantes produzem um duro contraste com a tortuosa retórica dos adultos, garantindo um humor lúdico, espontâneo, sem ferrugem - cheio de leveza e graça. Graça divina ou humana, à escolha do leitor. 

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso

SALIBA, Elias Thomé. Quero seu autógrafo, eu faço coleção.Caderno 2 de O Estado de S.Paulo, São Paulo, p. D-8, 24 dez. 2008.

domingo, 19 de agosto de 2012

‘Lixo lógico’ - CAETANO VELOSO (O Globo)

16/08/2012 

‘Lixo lógico’ - CAETANO VELOSO (O Globo)


‘Lixo lógico’ - CAETANO VELOSO

NOVO ÁLBUM DE TOM ZÉ É O MELHOR DISCO DESDE SEU RENASCIMENTO
O GLOBO – 5/8/2012

“Tropicália, lixo lógico” é o melhor disco de Tom Zé desde que ele renasceu artisticamente, convidado a sair do esconderijo para onde nós o empurráramos nada menos do que por David Byrne, o mais elegante de todos os roqueiros. (Num documentário, Byrne diz que, além de tudo, Tom Zé era quem estava, dentre os artistas brasileiros de que ele teve notícia, propriamente identificado com a vanguarda do sul de Manhattan.) David é o homem a quem devemos “Fear of music”. Felizmente é também impagável a dívida que temos com ele pela revelação de Tom Zé ao mundo. Os discos que este fez desde então confirmam a impressão provocada no americano. Mas neste “Lixo lógico” temos mais concentrado do que nos outros o efeito cômico-sério extraído da abordagem simultaneamente eruditíssima e pop que ele consegue, de que a análise espetacular de “Tô ficando atoladinha” é um exemplo perfeito. Qualquer um pode ver no YouTube. Referindo-se a seu disco “Danç-Eh-Sá” (e também aos círculos concêntricos de influência da bossa nova), Tom Zé demonstra por que “tô ficando atoladinha” é um “metarrefrão microtonal e polissemiótico”.

Como ali, na tese do “lixo lógico” surge a informação séria que se sabe cômica em seu deslocamento. Como pedir cachaça no avião (em 1968: hoje, cachaça, confirmando o profeta Tom Zé, é assunto de presidente dos Estados Unidos). E o tom com que os aspectos sensatos e os aspectos histriônicos são alternada ou concomitantemente revelados é a força artística de Tom Zé. Aqui mostrando-se rica como nunca, nas menções meio ocultas a nomes, timbres e cadências da época. E de agora. Talvez a intensidade com que isso acontece se deva ao tema ser a Tropicália. Diferentemente da bossa nova, a Tropicália é coisa de Tom Zé. Não só ele fez parte do movimento: ele realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizá-lo. É como se Gil, eu, Sérgio Dias e Rita Lee tivéssemos cada um partido para algo livre do projeto inicial: Tom Zé ficou com as questões centrais. E a biografia da Tropicália que ele apresenta nessa nova obra tem muito de autobiografia. Em Santo Amaro, eu vivia na periferia do Rio de Janeiro. Santo Amaro era urbana até a medula. Essa versão radical da Tropicália como o choque entre uma mente pré-aristotélica e a terceira revolução industrial é fascinante. Não me ocorreria tal versão. Mas a Tropicália fica belíssima assim tratada nas canções, sons e intenções do CD de Tom Zé. A minha própria pergunta íntima sobre o tema muda de tom: o modalismo de “De manhã” me aparece mais entranhado do que eu supunha. E eu o encontro mais próximo da Tropicália do que sempre cri. Uma vez falei com Tom Zé no telefone sobre isso. Mas o disco me convenceu mais. Veja o que é a força do estilo.

Talvez Bethânia, Gal e eu sejamos os menos medievais dos tropicalistas. Isso se, contra a própria vontade dela (mas em acordo com o fato de que a canção “Baby” foi por ela sugerida, além de ela ter sido quem me levou a atentar para Roberto Carlos), considerarmos Bethânia uma tropicalista. Seja como for, há uma identificação sertaneja que Gil (em larga medida) pode partilhar com Tom Zé, mas Bethânia, Gal e eu, meninos da área da Baía de Todos os Santos, vimos de outro ambiente mental. Crescemos em cidades coloniais (Santo Amaro, Salvador), as que, na ordem inversa do que aconteceu no Velho Mundo, nasceram antes do campo (como ensina Antonio Risério em seu “A cidade no Brasil”).

São cidades já pensadas de uma perspectiva (a palavra vem bem a calhar) renascentista. É verdade, como nós sentimos desde sempre (e Risério também explica em seu livro), as cidades racionais imaginadas pelos colonizadores terminavam sempre repetindo algo das cidades reais da metrópole, as quais eram ainda labirínticas, à moda medieval, sendo que as portuguesas ainda o eram mais, por causa da influência árabe. Mas para os santamarenses e a soteropolitana as formas mentais sertanejas eram remotas. Não tínhamos o repentista, o cordelista ou o aboiador em voz de alcance. E palatalizávamos os dês e os tês antes do i. Essas sutis diferenças me vêm à cabeça ao ouvir “Tropicália, lixo lógico”, o disco novo de Tom Zé.

Quando compus “De manhã”, embora me tivesse deixado levar pelo modalismo nordestino (tão em moda sobretudo por causa de Edu Lobo), eu mais resignei-me a aceitar essa tendência do que a achei dentro de mim. Ao contrário, eu queria poder ter feito algo que mantivesse a natureza do samba de roda, nunca modal, sempre pensado em termos de tônica/dominante/subdominante. Pois bem, o que apaixona Tom Zé nessa canção é justamente o modalismo — na verdade, o uso a seu ver original de fórmulas modais.

O GLOBO
05/08/2012


 Escrito por Tom Zé às 13h12
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Linguagem e mente, Noam Chomsky



Vocês podem dizer que estou atrasada, mas só agora que eu estou PIRANDO COM CHOMSKY. Olha que interessante as coisas que ele escreveu:

 "Um exame atento da interpretação das expressões logo revela que desde os primeiros estágios a criança conhece imensamente mais do que a experiência provê. Isso é verdadeiro mesmo para simples palavras. As crianças pequenas adquirem palavras numa proporção de cerca de uma para cada hora acordada, com exposição extremamente limitada e em condições altamente ambíguas. As palavras são compreendidas de modos sutis e intricados que vão além do alcance de qualquer dicionário e estão somente começando a ser investigados. Quando se vai além das palavras isoladas, a conclusão se torna ainda mais dramática. A aquisição da língua s parece muito com o crescimento dos órgãos em geral;é algo que acontece com a criança e não algo que a criança faz.  E, embora o meio ambiente importe claramente, o curso geral do desenvolvimento e os traços báscios do que emerge são pré-determinados pelo estado inicial. Mas o estado inicial é uma posse comum  dos homens. Tem de ser então que, em suas propriedades essenciais , as línguas são moldadas na mesma forma. O cientista marciano poderia  concluir sensatamente que há uma única língua humana, com diferenças somente nas margens."

 Noam Chomsky. Primeira Palestra. In : linguagem e mente. Editora UNB.1998. P. 23

19 de agosto : Dia do Historiador1


Parabéns para nós :)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

... Nada é tão sério assim...

"... neste curso falaremos de teoria da história, filosofia, hermenêutica, epistemologia... Mas também faremos algumas piadas, afinal nada é tão sério assim!" (rs)



Era mais ou menos assim que começavam os cursos da Teoria da História do professor Saliba. Foi assim que, desde o começo, ele me levou para seu peculiar modo de ver a história! Eu adorava! Tanto que ele virou meu orientador no mestrado e no doutorado: é uma opção por essa forma diferenciada de ver a vida : a dos humoristas, dos bonobos, dos poetas, das crianças. Nessa forma contam muito fatores que leituras mais "sérias" desconsideram: ritmo, linguagem, sons, silêncios. Tudo que produz significação e pode vir a se tornar narrativa. (História?)
Se quiserem saber mais, leiam esta deliciosa entrevista do Saliba e assim como ele faz na foto, dêem muita risada, afinal "nada é tão sério assim" ... rs

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Exposição "Avesso do Avesso : o processo de criação de escritores, artistas plásticos e músicos"


Bem legal esta exposição! Penso que é essa mostra é uma AMOSTRA da concepção da "Pós graduação multidisciplinar em Culturas e Identidades Brasileiras", do IEB/USP, que eu li num folheto que eles estão distribuindo no Instituto: Considerar a "criação que gesta realidade" e "a realidade da criação dos documentos", que são dois lados da mesma moeda!
Juro que não sabia dessa proposta , mas também faço pesquisa nos arquivos do IEB (embora meu doc não seja por lá, mas na história mesmo) e achei que meus objetivos casam muito bem com essas ideias. Como, por enquanto, eles só oferecem curso de mestrado e pós doutorado, confesso que vou começar a pensar com mais calma... para um  pós doc, primeiro  preciso saber alguns nomes, sacam?