Bela edição da Record 1994 |
Continuo lendo mais obras de Jorge Amado, desta vez nesse, que foi um de seus últimos romances, cujo título sempre me deixou bem curiosa. Sabendo um pouco mais da obra, vi que esse é só o primeiro título, pois o livro, dialogando com a literatura oral e medieval, tem ainda mais dois, sendo :
"A Descoberta da América pelos Turcos ou De como o Árabe Jamil Bichara, Desbravador de Florestas, de visita à cidade de Itabuna para dar Abasto ao corpo, ali lhe ofereceram fortuna e casamento ou ainda Os Espansais de Adma"
Pois então, estamos diante de uma obra assumidamente nordestina, com toda a herança moçárabe que carrega. No começo ei comentei assim:
DESCOBERTA DA AMÉRICA PELOS TURCOS -Ah, esse livro vem com uma introdução explicando porque ele foi escrito (aquela coisa do Jorge de contar causos), sobre as traduções e edições. Em certo momento ele manda: "... Acrescento que a edição turca, publicada nos começos de 1993, é linda; quanto a tradução, eu a considero perfeita: as traduções perfeitas são aquelas em línguas que o autor não pode ler."
Na verdade, o livro, ou "romancinho", foi uma encomenda feita em virtude das comemorações do quinto centenário da "Descoberta da América" em 1992.
Ilustrações: à esquerda a tropa de burros e o episódio romântico; à direita a intimidade de Adma e seu esposo; |
O texto , juntamente com um do norte americano Norman Mailer, um do mexicano Carlos Fuentes, circularia nas viagens aéreas do período, porém era tudo golpe e Jorge precisou lançar depois por conta própria.
Livro muito engraçado, contando a história de um árabe e um libanês, o jovem Jamil Bichara "sultão dos bordéis" e o cinquentão erudito contador de histórias Raduan Murad, que chegam a Bahia no começo do século XX, instalam-se na Bahia, para "descobrir a América".
Isso é uma espécie de epígrafe de "A Descoberta da América pelos turcos". Nos tempos em que vieram os "turcos" descobrir a América, tiveram ainda que procurar outra dádiva, a que tem um anjo por dentro kkkkkkkkk
Além da edição da Record anos 90, a mesma que li os primeiros Gabos, a letra grande, o vocabulário leve e até chulo, próprios de Jorge e as ilustrações magníficas de Pedro Costa, atestam a data do livro, vencedor do Jabuti, e mantém a diversão. Me lembrou tanto um Ariano Suassuna, algumas xilogravuras "amorais", bem cultura popular.
"A DESCOBERTA" E EU
Acho que entendi um pouco mais o projeto literário do Jorge Amado depois do Tenda dos Milagres (❤️) e esse livrinho, último dele, é pra mim um bom final, mesmo não estando entre os melhores de Jorge, mas é um dos seus livros mais DIVERTIDOS.
Claro que as booktubers novinhas cancelaram o Jorge Amado, acusaram de MISOGENIA (justo ele, o autor das heroínas!), não acho que caiba na conta de Jorge Amado, pessoalmente, a descrição dos costumes de uma Bahia no começo do século XX, se eles nos parecem terríveis hoje, é porque o tempo veio esclarecer muitas coisas, do século passado para esse, ou seja, homens violentos sempre existiram e não é porque Jorge os retrata que seu livro deixa de ser bom, ou que o autor seja cópia fiel desse ou daquele comportamento. Para terminar eu fui ler o posfácio que Saramago escreveu (e inspirou o título deste post), que colo aqui:
Uma certa inocência
José Saramago
Durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor terá conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor estrangeiro começou a conhecer o Brasil quando começou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jorge Amado, com a mais transparente das evidências, a complexa heterogeneidade, não só racial, mas cultural, da sociedade brasileira. A generalizada e estereotipada visão de que o Brasil seria reduzível à soma mecânica das populações brancas, negras, mulatas e índias, perspectiva essa que, em todo caso, já vinha sendo progressivamente corrigida, ainda que de maneira desigual, pelas dinâmicas do desenvolvimento nos múltiplos sectores e actividades sociais do país, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazível desmentido. Não ignorávamos a emigração portuguesa histórica nem, em diferente escala e em épocas diferentes, a alemã e a italiana, mas foi Jorge Amado quem veio pôr-nos diante dos olhos o pouco que sabíamos sobre a matéria. O leque étnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do que as percepções europeias, sempre contaminadas pelos hábitos selectivos do colonialismo, pretendiam dar a entender: afinal, havia também que contar com a 12631 - Descoberta da América multidão de turcos, sírios, libaneses e tutti quanti que, a partir do século XIX e durante o século XX, praticamente até aos tempos actuais, tinham deixado os seus países de origem para entregar-se, em corpo e alma, às seduções, mas também aos perigos, do eldorado brasileiro. E também para que Jorge Amado lhes abrisse de par em par as portas dos seus livros. Tomo como exemplo do que venho dizendo este pequeno e delicioso livro cujo título — A descoberta da América pelos turcos — é capaz de mobilizar de imediato a atenção do mais apático dos leitores. Aí se vai contar, em princípio, a história de dois turcos, que não eram turcos, diz Jorge Amado, mas árabes, Raduan Murad e Jamil Bichara, que decidiram emigrar à América à conquista de dinheiro e mulheres. Não tardou muito, porém, que a história, que parecia prometer unidade, se subdividisse em outras histórias em que entram dezenas de personagens, homens violentos, putanheiros e beberrões, mulheres tão sedentas de sexo como de felicidade doméstica, tudo isto no quadro distrital de Itabuna, Bahia, onde Jorge Amado (coincidência?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca brasileira não é menos violenta que a ibérica. Estamos em terra de jagunços, de roças de cacau que eram minas de ouro, de brigas resolvidas a golpes de facão, de coronéis que exercem sem lei um poder que ninguém é capaz de compreender como foi que lhes chegou, de prostíbulos onde as prostitutas são disputadas como as mais puras das esposas. Esta gente não pensa mais que em fornicar, acumular dinheiro, amantes e bebedeiras. São carne para o Juízo Final, para a condenação eterna. E contudo… E, contudo, ao longo desta história turbulenta e de mau conselho, respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espécie de inocência, tão natural como o vento que sopra ou a água que corre, tão espontânea como a erva que nasceu depois da chuvada. Prodígio da arte de narrar, A descoberta da América pelos turcos, não obstante a sua brevidade quase esquemática e a sua aparente singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como Jubiabá, Tenda dos Milagres ou Terras do sem-fim. Diz-se que pelo dedo se conhece o gigante. Aí está, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado.
Resumindo: Adorei está leitura. Que venha agora um livro contemporâneo para preencher meu novembro!