Quando emprestei da Biblioteca do Sesc Pompéia, sem saber como seria |
Esse ano eu até tentei escolher os livros que ia ler a cada mês, mas eles mesmos foram aparecendo ou se afastando de mim e eu deixei fluir. Lendo contos de Lygia no mês passado, pensava que precisava ler Conceição e assim fiz acontecer. Fui a biblioteca do Sesc Pompéia e peguei esse romance e a leitura fluiu muito rápido!
Antes um comentário sobre a capa linda, é um recorte desde quadro
Postei alguns trechos lindos
"CANÇÃO PARA NINAR MENINO GRANDE : "Da mãe, sempre escutara que homem era o bicho mais perigoso, principalmente se fosse muito bonito. E completava a fala dizendo que eles não passavam de meninos grandes, que viviam agarrados às saias das mulheres em busca de proteção ou de brinquedo. Brinquedo esse em que, se a mulher não cuidasse, não desconfiasse ela mesma, o corpo dela poderia se transformar em joguinho nas mãos deles."(p.89-90)
Ou então
CANÇÃO PARA NINAR MENINO GRANDE "Enquanto isto, sozinha em seu quarto,sonhando que a sua solidão seria desfeita um dia, Antonieta Véritas da Silva imaginava a chegada de um homem,pelo qual ela se apaixonaria, sem reserva alguma. Tamanha seria a paixão, que ela chegaria ao ponto de querer viver com ele. Um homem que fosse capaz de adivinhar e entender os desejos dela, na hora em que ela entregasse o seu corpo para ele. Um homem que tivesse uma língua leve-leve como uma penugem e brincasse suavemente com seus lábios, até alcançar o céu de sua boca. E depois atingir com cuidado todas as fendas de acolhimento queno corpo dela possuía e que ela gostaria de oferecer à pessoa amada. Esse homem existia?" Canção de ninar menino grande, Conceição Evaristo,p. 55-6
A grande viagem por Minas Gerais
"Quando o trem Vapor Azul parou preguiçoso sobre os trilhos da pequena estação da Vila Azul, todo ao redor gozava da calmaria de sempre. Tudo azul. Tudo blue. O vilarejo era assim conhecido como Vila Azul dada a abundância de agapanthus existentes nos jardins da cidade. A flor azul, também conhecida como lírio africano, que florescia milagrosamente na vila, desde as cercanias das linhas férreas até ao adro da minúscula capela local, assim como em volta das tumbas do cemitério e na estradinha que levava à única escola do povoado. E por essa profusão de azul a inundar a natural ambiência da vila, segundo a visão dos moradores, o trem quando apontava lá longe vinha com um tom azulado e assim chegava também. Era o Vapor Azul irrompendo o anilado espaço do lugarejo blue." "Canção para ninar menino grande", Conceição Evaristo P.43/4Mais música "Trem Azul" impossível! Como não amar?
Tem até um trecho sobre a Cinderela Negra. Uma lembrança dolorida da infância de Fio Jasmim foi quando ele não pôde ser o príncipe na escola, sendo trocado por um garotinho loiro. Isso veio à mente dele quando foi homenageado na cidade da laranja e ficou apaixonado pelos pés de uma moça negra:
"...a moça notou quando o novo maquinista parou seduzido contemplando os pés dela.'um mimo!' Fio Jasmim nunca havia posto os olhos nos pés de mulher alguma. Em sua afoiteza de homem jovem, a sua sedução era conduzida somente para algumas partes do corpo das mulheres. -'um mimo, um mimo'! Encantado, havia descoberto que as mulheres tinham pés. E se perdeu no contemplar daqueles pés negros. Pés mal cobertos por sandálias de tiras coloridas, que, mesmo parados, pareciam ter desejo e força para ganhar o mundo. Foi tão intenso o olhar eternizado de Fio para os pés da moça Paranhos, que ele esqueceu de dar um passo à frente (para receber o representante da cidade ao visitante) e a moça achou que ele estivesse recusando receber o presente. Um vidro de compota de laranja pesava no ar, quase se estilhaçando diante da distraída recepção de Fio Jasmim. Suas mãos abertas no ar se moviam quase paradas no gesto da recolha da oferta. E tal foi a demora no ato do recebimento que a família ofertante pensou humilhada em recolher o gesto de boas-vindas ao moço. Jasmim, ainda distraído, segurou a oferta como quem nada tivesse entre as mãos, a não ser um vidro vazio, cheio de nada. Tudo nele , ali baque momento presente, era outro instante ganhando diferente sentido. O moço maquinista, recém-chegado à cidade, tentava manusear no tempo uma lembrança distante, provocada pela descoberta dos pés nus da moça.'os pezinhos pareciam os da Cinderela' -pensou Fio Jasmim- 'de uma Cinderela negra'. E ele, Príncipe Negro, na festa que haveria na casa dela, perto da estação, iria beijá-los e calcá-los...Tal ato significaria um pedido para fazer amor ela; pedido de casamento não, pois já estava comprometido com Pérola Maria. Por um momento, o devaneio se desfez, mas uma recordação da infância insistia entre outros pensamentos." (P.20-2)
Tem um trecho tão forte, da relação de Fio com Juventina, a Tina, a jovem que o amou desde menina, quando ele já era casado, e que viveu com ele, tendo permanecido virgem o tempo todo não consegui transcrever, mas fotografei as páginas e colo aqui
Poxa, atire a primeira pedra a mulher que,inocentemente, só quis se dar ao amor,sem exigir nada em troca. É uma fase,ainda bem que passa.
Resumindo, eu fiz a seguinte postagem no GRUPO DE LEITURA - LER É VIVER! , no Facebook:
Esta semana terminei de ler o excelente "Canção para ninar menino grande", da Conceição Evaristo. O livro é um mosaico de escrevivências, muitos " causos", narrados poeticamente pela autora, que nos leva de trem, com seu protagonista, a visitar várias cidades do interior mineiro, ou seja, o livro é também uma viagem a Minas. Em geral, nesse seu livro sobre masculinidade negra, Conceição usa a história do maquinista Fio Jasmim, que é sedutor, o próprio "negão de tirar o chapéu" da música, como pano de fundo para ir contando a história de suas muitas mulheres, e dos seus quase incontáveis filhos, conhecidos e reconhecidos ou não. As histórias são delas, porque ele, mesmo que fosse forjado por feridas e dúvidas, ainda é só aquele menino alienado de seus reais desejos, que reluta em crescer e está sempre agarrado nas saias de mulheres, "em busca de proteção ou brinquedo", expressando uma " virilidade física que, uma vez satisfeita, apontava para o nada." Como leitora e mulher negra digo que é tão difícil reconhecer vários homens que conheci no Fio e a mim mesma nas histórias de tantas dessas mulheres, especialmente quando alguma o acolhe instintivamente em seu peito para acalentar! Recomendo muito essa leitura.
Essa foto feliz foi quando eu terminei: Que livraço! |
Mas a leitura eu concluí num local público, comentei sobre :
CANÇÃO PARA NINAR MENINO GRANDE: Levei o livro para ler nas horas vagas numa consulta médica. Terminei de ler no ônibus. Quando acabei devo ter dito algo como NOSSA! E aí que me dei conta de que ao meu lado estava sentado um jovem negro, como se fosse um aluninho meu, que reagiu a minha expressão, tipo "ah, sei como é". Aí ele começou a falar comigo, não tinha lido o livro que terminei, mas conhecia a Conceição Evaristo e até me recomendou esse livro de poesia preta, que ele estava lendo no celular
Estar ao lado de um mocinho racialmente educado justamente na hora que terminava o romance sobre a dolorida masculinidade negra, me apareceu um presente dos orixás, fiquei esperançosa com essa nova geração!
Fala Conceição Evaristo