quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Tereza Batista : a defendida dos orixás

Vários Orixás ajudaram  Tereza Batista nas guerras
E também quiseram seu tanto da cabeça da valente mulher


 Estou no maravilhoso capítulo final deste livro incrível, em breve escrevo um comentário sobre ele todo, mas acabe de ler um dos trechos mais lindos e emocionantes de todo o Jorge Amado que conheço, é sobre a disputa dos orixás pela guarda de Tereza Batista, a grande heroína de cordel. Vejamos:

”... Deseja saber a verdade sobre o santo de Tereza Batista, quem lhe determina a vida e a protege contra o mal, o anjo-da-guarda, o dono da cabeça? (...) 

Em se tratando de Tereza deixe que lhe diga haver motivo de sobra para confusão ; até quem muito sabe, nesse caso se atrapalha na leitura dos búzios sobre a mesa. Muita gente andou vendo por aí e não houve acordo. Os mais antigos falaram Yansã, os mais recentes Yemanjá. A si disseram Oxalá, Xangô. Oxóssi, não é verdade? Euá e Oxumaré, ainda mais? Não se esqueça de Ogum e de Nanã, tampouco de Omolu.

Também eu fiz o jogo e olhei no fundo. Vou lhe contar: nunca vi uma coisa assim e há mais de cinquenta anos sou feita neste peji e há mais de vinte anos zelo por Xangô.

Quem se apresentou na frente com o alfanje rutilante foi Yansã, dizendo: ela é valente e boa de peleja, a mim pertence, sou a dona da cabeça e ai de quem lhe faça mal! Logo atrás compareceram Oxóssi e Yemanjá. Com Oxóssi Tereza veio da mata espessa, do agreste ralo, da caatinga seca, do sertão ardido e desolado. Sob o manto de Yemanjá cruzou o golfo para acender a aurora no Recôncavo, depois de guerrear por ceca e meca. Vida de combate de começo ao fim, para ajudá-la na briga feia e crua, além de Yansã, a primeira e principal, vieram Xangô e Oxumaré, Euá e Nanã, Ossain trazendo as folhas. Com o paxorô da sabedoria, Oxalufã, Oxalá velho, meu pai, lhe abriu o caminho certo onde passar.

Não estava Omolu montado no lombo de Tereza na cidade de Buquim durante a epidemia de bexiga negra? Não foi ele quem mastigou a peste com o dente de ouro e a pôs em fuga? Não a designou Tereza de Omolu na festa dos macumbeiros de Maricapeba? E então? Omolu veio brabo, aberto em chagas, reclamar o seu cavalo.

Veja que grande confusão se armou. Não tive outra saída senão chamar Oxum, minha mãe, para ela apaziguar os senhores encantados. Chegou nos dengues e nos panos amarelos, luzindo ouro nas pulseiras, nos colares, a própria faceirice. Logo se acomodaram os orixás, todos a seus pés enamorados, machos e fêmeas, a começar por Oxóssi e por Xangô, seus dois maridos. Aos pés igualmente de Tereza, em torno da formosura, pois Tereza tem de Oxum o requebro e o mel, o gosto de viver e a cor de cobre. O fulgor dos olhos negros, porém , é de Yansã, ninguém lhe tira.

Vendo Tereza Batista por todos os lados cercada e defendida, os orixás em seu redor, eu lhe disse, resumindo o jogo: mesmo no pior aperto, no maior cansaço, não desista, não se entregue, confie na vida e e siga avante.

Contudo, existe sempre um instante de desânimo, quando até o mais valente se dá por acabado, resolve largar as armas e abandonar a luta. Também com ela sucedeu, pergunte por aí e saberá. Mais não posso lhe dizer por não ter tirado a limpo. Para mim, todavia, quem guiou os passos do afogado nos becos da cidade até o esconderijo de Tereza foi Exu. Para armar baderna, Está sozinho. Quem melhor conhece travessas e atalhos, quem mais gosta de acabar com festas?(...) Sobre esse assinto, lhe disse tudo o quanto sei.” (Jorge Amado. Tereza Batista cansada de guerra, p. 346-7)


Não é lindo? Me parece tanto como eu vejo a guarda dos orixás nas nossas vidas, sendo nossos pais/mães de cabeça ou não, são a eles todos que nós chamamos para nos guardarem em cada momento da vida.

Jorge Amado me representa tanto, suas mulheres então, nem comento!

Capa do livro didático sobre Jorge

De todas as coisas que me interessam na literatura de Jorge Amado é, inegavelmente, a presença das divindades de origem africanas. Quantas vezes não me peguei desejando ler um do Jorge, para ficar mais perto dos orixás? Tem muitos outros temas importantes, que causam extrema identificação, mas esse é o que aquece meu ❤️. Emocionada com o trecho de Tereza comentado acima, dei uma olhada, bem por cima, em um  livro didático sobre Jorge que comprei e no  começo do texto "Religião e sincretismo em Jorge Amado", do antropólogo de Reginaldo Prandi (que admiro muito) e ele fala exatamente sobre o que me toca na literatura amadiana: a ancestralidade, na construção das tramas, das personagens, do cotidiano, assim como também é na vida (alguns atos cotidianos são feitos, conscientemente, para agradar aos orixás, por exemplo). Diz Prandi:

"A religião na Bahia(acrescento:no Brasil), como em Jorge Amado, não se separa do mundo real, que se mostra cheio de mistério, segredo, esse cotidiano também está sempre permeado de ciladas e enganos  e até de falsidades e mentiras. A vida nunca é exatamente o que parece ser, nem deixa de ser o que de fato é. Ingrediente excepcional para fazer crescer um bom enredo. De um lado, homens e mulheres que se comportam como os deuses se comportariam se vivessem na Terra; do outro, orixás que precisam dos seres humanos para se alimentar no repasto dos  ebós, para dançar na roda das feitas, para rememorar no transe das iaôs suas míticas aventuras. Sem nunca perder-deuses e mortais- a sensualidade, a malícia e a alegria de ser. "(P 49)


Coisa linda, né? Acho linda essa coisa de representar as divindades africanas participando da vida e do cotidiano dos humanos, o pouco que aprendi sobre as religiões afro brasileiras isso foi uma das certezas que levo pra vida. ❤️ 
Na literatura de Jorge, os orixás são tudo, são temíveis, guerreiros, heróis...com isso alimenta nosso imaginário sobre outras narrativas, passados e futuros possíveis.
Teria sido Jorge Amado um dos nossos primeiros "afro futuristas"? Só amo! 


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