domingo, 13 de junho de 2021

Ouvindo as vozes da morte em Pedro Parámo, de Juan Rulfo


linda capa com referência a passagem fluída entre vida e morte

SOBRE O ROMANCE :

Publicado em 1955, “Pedro Páramo” foi o único romance publicado pelo escritor mexicano Juan Rulfo, muito elogiado, incentivou gerações de escritores na América Latina e fora dela e dizem ter sido o precursor do tal realismo fantástico latino americano, por ser composto de maneira inovadora para a época, narrativa muito fragmentada e polifônica, saber quem narra requer muita atenção, pois ali se ouve até, e especialmente, os mortos. Ora, mas afinal de que se trata o livro?

Da história de Juan Preciado que, atendendo ao último pedido de sua mãe em seu leito de morte, que vai conhecer Comala, aldeia onde vive seu pai Pedro Páramo. Assim ele vai, num trajeto de descida infinita, onde o calor se intensifica cada vez mais, como se fosse um caminho para o inferno. Nesta viagem e também na chegada a Comala, Preciado conhece lugares e interage com pessoas, sempre em um clima nebuloso, pois não tarda a perceber que naquele povoado esquecido e afastado, também os mortos habitam o local de forma tão intensa que chega até a ser cômica a necessidade de indagar “estás vivo ou morto”? Como diz Eric Nepomuceno no prefácio da obra

“de maneira inesperada e com sutileza de equilibrista, vão se fundindo mortos e vivos ao longo do relato, até que essa diferença se dissolve por carecer totalmente de importância: o mundo de “Pedro Páramo” é outro e são muitos, onde tudo serve para que as peças deste mosaico se encaixem para alcançar a perfeição final.”(Edição Best Bolso, 2015.p.12)

Lembrando que se trata de um romance mexicano e que para tal país que, por herança de seus povos originários, mantêm o culto aos mortos, muito como forma de resistência aos valores tradicionais. Para Otávio Paz, em Todos os santos, dia de finados”:

“para os antigos mexicanos a oposição entre morte e vida não era tão absoluta quanto para nós. A vida se prolongava na morte. E o inverso. A mortenão era o fim da vida, massim outra fase de um ciclo infinito. A vida não tinha função mais nobre que desembocar na morte, seu contrário e complemento.; e a morte, por sua vez, não era um fim em si; o homem alimentava com sua morte a voracidade da vida.(...) O advento do catolicismo modifica radicalmente esta situação.(...) Para os cristãos, é o indivíduo que conta. O mundo - a história, a sociedade - está condenado de antemão. Cada um de nós é o Homem e em cada um de nós estão projetadas as esperanças e as possibilidades da espécie. A redenção é obra pessoal.”(In: Labirinto da solidão. RJ:Paz e Terra, 2006, p.50-1)

 

Afora essa questão cultural e profundamente antropológica, no breve romance se fala criticamente de diversos temas: Pedro Páramo é um coronel, o dono de Comala, a ele todas as força se vendem, inclusive a Igreja, dando a entender que todos os mortos daquela cidade fantasma, viraram almas penadas pois não tiveram nem a absolvição do padre Rentéria, que era mais um pecador entre tantos. Desta forma, não sendo um romance claramente cituado no tempo especifico,a aldeia e a vida/morte das personagens são atemporais, porém a história o perpassa sempre: por exemplo, temos a passagem dos revolucionáriosde Sancho Pança, referência a Revolução Mexicana; que tanto prometeu aos campesinos, mas acabou por abandoná-los em cidades literalmente fantasmas como Comala, com uma indiferença igual ou maior do que a dos antigos latifundiários...

Não quero desenvolver mais temas do livro ou dar spoiler, mas trago um trecho que, dentre tantos, julguei muito bonito.

É sobre Susana San Juan, a última esposa e verdadeiro amor de Pedro Páramo, que antes dele já tinha enviuvado. A perda do seu primeiro marido Florencio lhe foi tão dolorida que a levou à lamentar na sepultura, depois de morta, fazendo com que outros mortos, na sepultura comum, ouvissem seus lamentos pela eternidade:

“- O que ela está dizendo, Juan Preciado? - Perguntou Dorotea

- Diz que ela escondia os pés entre as pernas dele. Seus pés gelados como pedras frias e que ali se esquentavam como num forno onde se doura o pão. Diz que ele mordia seus pés dizendo a ela que eram como pão dourado no forno. Que dormia encolhida, metendo-se dentro dele, perdida no nada ao sentir que sua carne se quebrava, que se abria como um sulco aberto por um prego ardorosos, depois morno, depois doce, dando golpes duros contra sua carne macia; mergulhando, até o gemido. Mas que a morte dele tinha doido ainda mais. Isso é o que ela diz.” (p.112)

E, em outro momento, ela mesma assume a narração em trecho assim:

"Ah! por que não chorei e me alaguei em lágrimas para enxugar minha angústia? Senhor, tu não existes! Pedi tua proteção para ele. Que cuidasse dele. Isso eu te pedi. Mas tu só te ocupas das almas. E o que eu quero dele é seu corpo. Nu e quente de amor; fervendo de desejo; amassando o tremor dos meus seios e de meus braços. Meu corpo transparente suspenso pelo dele. Meu corpo leve preso e solto às suas forças; O que farei agora com meus lábiod=s sem sua boca para preenchê-los? O que farei dos meus lábios doloridos? " (p.113)

 

Livros comentados neste post

Como já é tradição nos comentários sobre os livros que leio, sempre coloco o “diário de leitura”, se ele existir. No caso de Pedro Páramo existe sim, e bastante, então vamos vendo as impressões que fui sentindo :

 

No dia 31 de maio eu escrevi

MIEDO A LOS MUERTOS - comecei a ler Pedro Páramo ontem e estou na metade. Já sabia que teria interação com os mortos, tudo bem pra mim que não tenho problemas, mas pra quem tem, recomendo cuidado, digamos que a presença deles é bem forte e normalizada. Estamos falando de um clássico mexicano, terra onde temos a festa dos mortos, né? Livraço!

 

Super empolgada, e com razão, mas depois bateu uma culpa e eu deixei de reparar no detalhe de que se trata de um clássico latino americano, por isso é denso e a gente não lê numa sentada, não mesmo. E também por isso, merecia uma edição mais trabalhada:

 

No dia 2 de junho eu me “chicoteei”:

LENDO PEDRO PÁRAMO- Nem deveria ter começado a ler sem antes escrever sobre "O avesso da pele", que me impactou demais, demais, mas como ainda não tive tempo de colocar uma pá de cal naquele (quem sabe hoje, com fé e coragem), a curiosidade era tanta que acabei começando a ler o surpreendente P. Páramo. Quando comecei a leitura fluiu tanto que achei que leria numa sentada, mas ,incrivelmente, a leitura não tem avançado. Acho que preciso me dedicar mais a ele, exclusivamente, porque ele merece...Geralmente costumo adorar edições de bolso, mas essa está me incomodando, não tem muito lugar pra escrever (esse livro exige um suporte anexo pra gente não se perder no quem é quem ou no quem é vivo e quem é morto), mas faço o que posso! De resto, tô gostando...

PS: A CAPA É LINDA... A gente sente isso mesmo no livro, a passagem entre morte e vida são tênues...”

No dia 3 de junho, tudo tem seu tempo e já no dia seguinte eu começo a estranhar o conteúdo morbido :

 PEDRO PÁRAMO -Já era pra eu ter me acustumado, mas toda vez que leio algo tipo "você está viva?", "você morreu de que?", "Quem te matou?" ainda me surpreendo! Que livro, gente!

No dia 7 de junho, como o livro é bom, fui me despedinco com saudade antes de terminar:

PEDRO PÁRAMO - Tô chegando nas páginas finais. O pequeno (porém complexo) livro me empolgou no comecinho, depois entramos na narrativa que, embora aposte sempre na mesma saída perturbadora (a presença e interação entre vivos e mortos) normalizou um pouco,mas é sempre surpreendente, para desembocar num final cheio de nós nos pontos frouxos, aí sim surpreende de verdade. Estou com pena de acabar. Carece de ter coragem.

No dia 10 de junho, depois terminei de ler e a dificuldade de sentar para escrever essas impressões de leitura me arrebatou:

LEITURAS - “Há dias terminei de ler Pedro Páramo: clássico, denso e sobretudo fúnebre, em um nível sem prescedentes. Antes dele já tinha tinha lido um romance tristissemo sobre um pai morto, agora , sem saber, "avancei" uns passos e mergulhei numa narrativa sobre morte, ou melhor, sobre mortos. Difícil é escrever sobre, vou tentar em alguns dias. Por hora comento: Não temos medo de fantasmas, claro, mas melhor que eles não surjam, não? Pois é...no caso não é bem medo, nem tristeza que eles me provocaram, talvez um desencanto, um desconforto. Sem medo de spoiler digo que, evidetemente, o romance não tem propriamente um final feliz, aliás, feliz seria se aquelas almas penadas tivessem qualquer final...

 

 

Para terminar, gostaria de abrir uma provocação: sabemos que Ruan Rulfo e Guimarães Rosa se conheceram, trocaram cartas (eu mesma nunca as li,mas sei da sua existência) e Rosa tem um conto, publicado postumamente em “Estas Estórias”, chamado Páramo. Tudo bem que o o Páramo ali se refere à região da cordilheira dos andes, nada de México, mas o tema do conto é justamente o embate entre a vida e a morte, como no romance de Rulfo. Conhecendo Rosa, não posso deixar de supor que esse tipo de coisa, muito provavelmente, não é coincidência...

 P.S. Quase ia me esquecendo de postar a música que embalou essa leitura. Não podia ser outra que não San Vicente, do Clube da Esquina, né?

 

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