segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

"Ciranda de pedra", a roda fechada da vida e o desamparo de Virgínia

Eu li Ciranda de pedra


Em dezembro de 2021 eu li meu último livro do ano, “Ciranda de pedra”, primeiro romance da Lygia Fagundes Telles, minha escritora brasileira favorita e tinha tudo para dar certo. E deu, pois gostei muito do livro. Embora ela tenha escrito coisas antes, ela mesma considera este o seu primeiro livro. É também o primeiro romance dela que eu li. Achei muito bom, aquela escrita que nos prende do inicio ao fim, uma leitura excelente.

Primeiro quero falar sobre a capa desta edição da Cia das Letras. Geralmente os livros de contos de  Lygia tem capas muito interpretativas, um recorte de uma obra de arte maior,indicando que o tesouro está nos detalhes . No caso deste romance a capa não foi um recorte, mas praticamente a obra toda 

À esquerda a obra original, à direita a capa do livro

"Tonga II", de Beatriz Milhazes, 1994
Muitas cirandas de pedrinhas 

Mas tive meus estranhamentos. O maior deles foi encontrar um texto tão bem explicado. Todo bom texto de Lygia, é cheio de metáforas e símbolos que, se observados, vão nos fazendo escavar melhor os significados da narrativa. Nesse livro, não sei se porque é um romance e não um conto, ou e é porque é o primeiro livro que ela considera ter escrito, todo isso é muito bem explicado, de forma quase didática.

Uma das coisas que mais me atraem na obra de Lygia é que embora ela tenha escrito excelentes contos de terror ou suspense, terríveis mesmo são aqueles fragmentos de narrativa do cotidianos cheios de tensão embutidas, nos quais você lê, não acontece muita coisa surpreendente, mas a gente sente o soco, só não sabe de onde veio. Nada é muito explicado, mas aparecem as metáforas, os símbolos,por exemplo,  o som do saxofone que contradiz o discurso do narrador ; a escolha do  o colar de falsas  pérolas que  supões uma traição; as lantejoulas verdes que parecem querer alcançar  Tatisa quando ela foge para não  presenciar a morte do pai; as três xícaras de café bem forte que servem de armadura para proteger a dignidade de Maria Camila quando seu castelo é invadido; o vermelhidão de loucura das cerejas nas memórias de infância;  o suor amarelo-verde que empapava o  vestido branco de mamãe no sonho; etc.

Lygia é excelente contista. Será que é também boa romancista ?Não tenho como saber ainda,por enquanto eu ainda prefiro a riqueza de tesouro dos contos.

No romance publicado em 1954, o narrador cola-se na perspectiva da protagonista Virgínia para contar a sua história, inicialmente como  uma criança e depois uma mulher adulta, que vai  narrando sua vida , conforme vai adquirindo consciência do que acontece.

Virginia é a caçula de uma família que, no inicio da narrativa, já está repartida.Enquanto seu pai  Natércio, um advogado muito bem sucedido, e as suas duas irmãs mais velhas: a  moralista e religiosa Bruna e a bela e dispersa  Otávia, moram em uma casa grande com a governanta Herta , e são vizinhos do jovens  Afonso e os irmão Conrado – seu amor platônico -  e Letícia , formando um grupo de cinco pessoas mais velhas que a menina Virginia admira e ao qual deseja pertencer, embora seja sempre excluída e rejeitada .  Ela, por sua vez,  mora em uma casa simples com sua mãe Laura – uma mulher com perturbações mentais- ; Daniel, o seu “amante”, que é também o  médico que a atende e que a menina chama de “tio”;  e a Luciana, uma empregada negra também apaixonada por Daniel e que Virginia vive depreciando, chamado-a  de “mulata” . Quando criança, Virgínia é carente e deseja que a mãe se cure e volte a morar com o pai.Nessa primeira parte do romance, a mais interessante, nossa pequena  protagonista vive em estado de profunda solidão, sem ninguém para conversar, brincar ou confiar. Em alguns momentos de desespero chega a implorar afeto até a Luciana, com quem normalmente troca farpas:

“Luciana, eu vou morrer, ninguém gosta de mim, ninguém! Diga que gosta de mim, pelo amor de Deus , diga que gosta de mim!

-Não chore assim alto. Quer que sua mãe ouça? Virgínia tapou a boca com as mãos. Soluços fundos sacudiam-lhes os ombros.

-Diga Luciana...

-Você está se despenteando.

- Quero ficar despenteada, tenho ódio deles! – exclamou puxando os cabelos. Estendeu-se no chão.- Queria morrer...

-Você vai sujar o vestido e não tem outro.

-Ninguém gosta de mim. Minhas irmãs não se importam comigo e minha mãe só gosta do Tio Daniel” (p.20).

 

No decorrer do romance vamos entendendo o contexto muito vagarosamente, seguindo a limitada consciência infantil da menina Virgínia, que Laura era casada com Natércio, passou a ter problemas mentais e o médico Daniel foi chamado para tratá-la e no fim acabaram se apaixonando, romance de onde ela nasceu, a mais nova, a filha do amante, como era pensada nóis anos 1950.  Laura e Daniel vão morar juntos, levando sua filhinha, que acreditava ser filha de Natércio e não entendia porque não morava com a família ou porque  as irmãs a rejeitavam. Virginia não é acolhida em lugar nenhum, é sempre um elemento que sobra e, numa visita a casa do pai Natércio, ela vê umas estátuas de anões de pedra, de mãos dadas, em uma ciranda da qual ela não pode fazer parte, assim como não pode fazer parte da ciranda de pedra formada por suas irmãs e seus vizinhos.  

Com a morte de Laura, na metade do romance, Daniel também morre em circunstâncias inovadora para a época, que não vou revelar aqui, e esse choque de realidade faz com que Virginia vá, enfim, morar na casa do pai e das irmãs, onde também é constantemente rejeitada e ouve da boca lúcida de Luciana, a verdade que nunca quis aceitar, que seu verdadeiro pai era o tio Daniel.

Ciente de que era indesejada por todos na casa do pai Natércio, aquele que não conseguia sequer olhar para ela, pois ela era o resultado vivo da traição que havia sofrido, Virginia pede para viver em um internato, de onde sai já adulta formada em línguas.

De volta a casa de Natércio a moça observa que, embora suas vidas tenham mudado muito a ciranda ainda rodava em torno de su mesma: Bruna se casou com Afonso e teve uma filha, Otávia virou artista plástica; Letícia uma tenista de sucesso e Conrado, seu príncipe, virou solteirão. Nesse retorno, incrivelmente, Afonso e Letícia a desejaram como mulher, assim como Robson , um novo atleta da ciranda. Sublinhando esse ponto do enredo, destaco a originalidade do romance para a época, além de tratar de loucura, divórcio, bissexualidade, entre outros temas tabus nos anos 1950. Mas, ainda que fosse disputada pelos membros da ciranda, Virginia foi percebendo que, por mais que tentasse fazer arte,nunca conseguia e a melhor coisa a ser feita seria tentar a vida longe daquelas pessoas, pois aquela ciranda de pedra deveria ruir sozinha, voltada para si própria.

Como foi uma leitura muito fluída, terminei rapidamente e quase nem fiz comentários sobre.  Só copiei trechos lindíssimos. O primeiro de quando Virginia visita a casa do pai Natércio e, isolada no jardim, depara-se com os anões e deseja fazer parte da roda, explicando então a metáfora da ciranda de pedra:

“Aproximou-se dos  anõezinhos que dançavam numa roda tão natural e tão viva que pareciam ter sido petrificados em plena ciranda. No centro, o filete débil da fonte a deslizar por entre as pedras. ‘Quero entrar na roda também!’ exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mai próximos. Desapontou-se com a resistência dos dedos de pedra. ‘Não posso entrar? Não posso?”  (Lygia Fagundes Telles . 'Ciranda de pedra", p.79)

Em um dos trechos mais bonitos do livro, encontramos a menina Virginia ouvindo, de seu quarto, os discos de Beethoven que tio Daniel coloca para tocar todas as noites e descreve  o som assim :

Os discos que ele punha para tocar eram sempre os mesmos e tinham um som um pouco gasto, como se estivessem esgotados. Mas ele repetia dez, vinte vezes sem parar. (...)A princípio pareciam sem sentido. Mas certa noite, na escuridão do quarto, só ouvir os discos que já sabia fazerem parte do álbum de Beethoven, recebera-os com obscuro sentimento de cumplicidade. A música tinha um enredo e desafiava esse enredo como uma pessoa amiga que entrava para uma visita, uma pessoa muito amiga, mas muito estranha, que ora chorava, ora ria, repetindo de vez em quando o começo da historinha :'Sabe Virgínia, eu vou contar, era uma vez...'. As histórias começavam bem, mas de repente tomavam um rumo imprevisto e vinha um assunto que nada tinha a ver com o início, ramificavam-se. Eram queixas, protestos, ela já os conhecia de cor, 'Agora vem a raiva, mas já vai passar'. E de fato, logo após vinham sons brandos, lentos,como que cansados devido ao acesso. E a história recomeçava numa obsessão: 'Sabe, Virgínia, mas eu estava contando'...Era um amigo difícil, triste, por isso mesmo era preciso ter paciência com ele." (Lygia Fagundes Telles . 'Ciranda de pedra", p.57-8)

Já adulta, se dá conta da impossibilidade de entrar na ciranda de pedra :

“A dança era antiga e exaustiva justamente porque ela ficara de fora, desejando participar e sendo rejeitada. E rejeitando-a para logo em seguida esforçar-se para entrar. Admitiram-na finalmente. Mas era tarde, jamais acertaria o passo.” (Lygia Fagundes Telles . 'Ciranda de pedra", p.173)

Não vou dar spoiler do que aconteceu no final, mas só copiar um belo trecho que encerra do romance e copie quando terminei de ler

"CIRANDA DE PEDRA : "Hei de me guiar por alguma daquelas estrelas que me dirá onde devo descer . (...)  ao menos isso eu quero, já que é preciso aceitar a vida, que seja corajosamente." (Lygia Fagundes Telles . 'Ciranda de pedra'(1952), p. 199)

Amo muito a escrita de Lygia! Em véspera de natal foi desafiador ler um  romance sobre o brutal desamparo de uma garota que nunca se sente pertencendo a lugar nenhum, como eu, mas quero ler mais e mais livros dela.