Sobre a experiência ímpar de
acompanhar uma mostra de filmes africanos e ter acesso a uma visada totalmente
nova das coisas, da vida, dos lugares e das pessoas, eu sempre falei bastante.
Mas quando li aqui as
palavras de Janína Oliveira (pesquisadora do Instituto Federal do Rio de
Janeiro IFRJ) sobre o que, na verdade, seria
o Cinema Africano, tudo de encaixou: “um
cinema feito por africanos, com temas
africanos, para um público africano”, diferenciando-se de cinemas
apenas rodados em África, ou mesmo uma versão tortamente exterior de africanos
ou mesmo daquele continente. Segundo Oliveira, alguns cineastas se enquadraram
nesse objetivo inicial da cinematografia africana e até conseguiram
assinar uma escola própria de cinema em África, que retratava e propunha
questões políticas do continente no cinema, como é o caso do senegalês Ousmane
Sembène , do
mauritano Med Hondo e até das primeiras obras do maliano Souleymane
Cissé. Como outros cienastas africanos, Cissé também foi estudar cinema fora da
África, na antiga União Soviética, como mandava o contexto da Guerra Fria e
toda a discussão anti colonial
Na
cinematografia de Souleymane Cissé , “Yeelen” marca um momento de
virada de chave, quando ele deixa um pouco de lado as questões político-
sociais e volta-se à temática mais local, filmando a adaptação de uma antiga
lenda oral do século XIII. O filme conta a história do jovem Niankoro,
interpretado pelo belo bailarino Issiaka Kane:
Sua missão é escapar da maldição
lançada pelo seu próprio pai Soma em uma disputa ferrenha, baseada na
cosmologia e nas crenças Bambarra. Na história, Niankoro
também tem poderes visionários e na sua busca pelo enfrentamento o pai,
consegue salvar uma aldeia, na qual ganha do rei uma esposa, Attou, mas
não pode se esconder do enfrentamento final com Soma, o qual resulta um
encerramento, mas também em uma semente de futuro. Na imagem vemos a então
rainha mais jovem Attou sendo tratada pelo Niankoro
por causa de sua infertilidade:
O filme não é tão solar como as aldeias do Senegal de Sembène, até porque ele retrata vários povos e locais, desde regiões mais escuras, como o lugar onde Niankoro vive com a mãe no começo do filme, lugar menos seco, onde sua mãe se banha no leite, conversando em oração com a “grande mãe” em um ritual belíssimo, onde podemos ver algo que acontece em todo o filme: os corpos negros nus, mas sem erotização, em num contextos ritualísticos ou não, aqueles corpos não são objetificados, apenas são eles mesmos apensa sendo:
Além disso, os lugares do filme apresentam pedreiras
douradas, até lugares mais íngremes, como os chãos secos pelos quais viaja até
chegar ao reino. Em uma das mais belas cenas do filme, Em belas cenas de luta é de se observar as
pinturas na pele do rosto em laranja, branco e azul,
tornando a cena mais bonita:
No curto período em que Niankoro viveu no reino que ajudou a salvar, reparei que o rei e a sua esposa mais jovem se vestem de panos laranja, como se essa fosse a vestimenta real. Muito bonito. Esta é Attou, uma bela africana:
Na live com Janaína Oliveira, em 27 de junho, foram
abordadas algumas questões relevantes, como o fato de, até pelo fato de que
Cisé desejava, a partir desta obra, não ser mais visto como cineasta político e
não mais apresentar claramente questões graves como o histórico colonizador, mas
flertar com a possibilidade de contar outras histórias, tentar outras formas de resistência, como apresentar
mais o “o de dentro” , voltar-se para a cultura Bambará e, com isso, tentar descolonizar nossa
percepção. Isso seria uma outra forma de abordar tema político, mas que para os
olhos ocidentais, não trariam questões tão relevantes, afinal ficaria tudo
inserido na categoria exótica: África ancestral e bonita,na qual o ocidental
não vê maiores significados. No entanto o filme é repleto de símbolos e
significados opacos aos olhos de quem não conhece a tradição malinesa, que
nunca é explicada no filme, é apenas sutilmente apresentada, compondo uma história
que rompe com as conexões necessárias na forma de narrar ocidentais. Não deve
ter sido à toa que, desde que comecei a ver o filme, lembrei de Guimarães Rosa:
não importa se não entendeu alguma passagem, porque não vou entender muita
coisa mesmo, o importante é continuar a
assistir, uma hora alguma coisa ou tudo faz sentido.
Com essa montagem que recusa a se explicar, que renega a
transparência ocidental, o filme aborda uma questão de fundamental importância
local : quando o pai não quer abrir mão do seu poder para deixar ao filho
estamos tratando da luta pelo poder entre gerações que, na verdade, significa
uma luta para não extinguir as tradições, mas um esforço pela continuidade daquela
cultura antiquíssima.
Nesse belo e poético filme vemos ser questionado, o tempo todo, nosso olhar estanque sobre a África tradicional e a ancestralidade, pois ele mostra que existem outras formas de se contar histórias, formas que não precisam, necessariamente, passar pelo filtro colonizador.