sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Negritude, música e ancestralidade em Milton Nascimento


3.      Negritude, música e ancestralidade em Milton Nascimento -  
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 16 julho de 2018)

Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar(…)
Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos,
viemos criar. (…)
Estamos chegando do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.
A de Ó (estamos Chegando) – Milton Nascimento e  Pedro Casaldáliga
Existem vários caminhos para se abordar o tema da negritude na vasta obra musical de Milton Nascimento (Bituca), uma vez  que estamos falando de um dos artistas negros mais significativos do Brasil, pois mesmo que sua sonoridade seja mundialmente reconhecida pela grandeza de sua voz divinal, que segundo Paulo Thiago de Mello, apresenta um timbre de  
“rara extensão e densidade”, o que lhe permite “restituir a força do canto, do entoar majestoso (…) acrescentando a ela ritmos e linhas melódicas”  
e também  pelo  refinamento harmônico apresentado em suas composições e interpretações, olhando de perto, é possível perceber outras influências recebidas por um ouvido musical treinado a reconhecer nas tradições culturais e danças populares,  um material riquíssimo que é sintetizado e purificado em sua musicalidade. Naquela obra também  encontramos  apontamentos a respeito de uma vivência do que é ser negro no Brasil, juntamente com um  vasto conhecimento da história dos seus ancestrais que vieram nobres e fortes da África e aqui foram escravizados, mas que, ainda assim, foram e são capazes de criar e sustentar a cultura do  nosso país. Mesmo reconhecendo ser um dos muitos caminhos possíveis  a partir dos quais seria possível abordar  o tema da negritude em Bituca, para sintetizar neste breve texto esta forte manifestação expressa na música popular brasileira, escolhemos abordar duas personagens que aparecem naquelas canções: a Maria, Maria e o Pai Grande, que estariam diretamente relacionadas ao reconhecimento de uma ancestralidade africana presente em território brasileiro.

Maria é personagem principal da canção Maria, Maria, composta para a trilha sonora da coreografia de mesmo nome que foi a primeira peça apresentada pelo  grupo de balé  Corpo, de  Belo Horizonte, em 1976, com m´sica assinada por  Bituca, roteiro de Fernando Brant e coreografia do argentino Oscar Araiz,  que  ficou seis anos em cartaz e percorreu catorze países. No espetáculo conta-se a história de vida de uma mulher negra do interior de Minas Gerais, desde a sua infância, que é muito marcada por referências ao passado escravocrata do país, conforme o roteiro de Fernando Brant, que é lido enquanto os bailarinos dançam :

Maria Maria nasceu num leito qualquer de madeira. Infância incomum, pois nem bem ela andava, falava e sentia e já suas mãos ganhavam os primeiros calos do trabalho precoce. Infância de roupa rasgada e remendada, de corpo limpo e sorriso aberto. Infância sem brinquedos, mas cheia de jogos aprendidos com as velhas que lavavam roupa nas margens do Jequitinhonha. Infância que acabou cedo, pois já ao quatorze anos, como era normal na região ela já estava casada.

Sobre o casamento ela se lembraria pouco, “ou não quer muito se lembrar daquele homem estranho a lhe dar balas e doces em troca de cada filho”, que no total foram seis, em seis ano de casamento, até que enviuvou, o que para ela foi um alívio, que a permitiu se definir como “Maria solidária,solitária, operária e brincalhona”e alegre como na música:  “dança Maria Maria, lança seu corpo jovem pelo ar, ela já vem, ela virá, solidária nos ajudar”.

Á respeito da  trajetória de Maria Maria a dissertação de mestrado A negritude através de “Maria Maria” de Milton Nascimento, de Carlos Alberto da Silva nos lembra que, nascida em meio a uma sociedade machista ocidental, Maria recria o destino a ela destinado, que seria permanecer dedicando-se exclusivamente aos afazeres domésticos e aos cuidados dos filhos pacificamente, como se fosse uma negra amarrada e amordaçada ao modo de suas  ancestrais escravizadas,  mas ela quis ser mais, desejou se libertar  dos cativeiros aos quais estaria presa para sempre, por isso,  em uma atitude de rebeldia, sempre enxergava a vida de forma alegre e bondosa.

Já no final da vida, ela se despede  na bela canção de Bituca em parceria com Sérgio Sant’Anna:

Eu sou uma preta velha aqui sentada ao sol, não tenho um nome,nem idade, nem pátria, não vou à qualquer parte, não quero nada (…) eu vou morrer aqui sentada ao sol.

Através da figura de Maria Maria, o espetáculo conseguiu tratar de muitos assuntos de interesse aos afrodescendentes, como o sincretismo religioso, que no roteiro do espetáculo é apresentado em uma  imagem na   faixa Santos Católicos x Candomblé:

Experimentem tirar pela força aquilo que faz um homem. Era crença dos católicos, que os santos africanos deviam ser esmagados. Impossível para os negros esquecer quem veneravam. Iludindo todos os brancos eles apenas mudaram o nome de seus santos. E daí surgiu a mistura preto-branco, afro-europeu, mexido bem brasileiro, farofa de religião.

Embora já disponibilizado na íntegra no Youtube, este espetáculo ficou mesmo conhecido através da canção Maria Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant, que foi gravada e consagrada por Bituca no álbum Clube da Esquina 2 (1978) e então a experiência daquela mulher negra se apresenta como uma verdade para todas as mulheres fortes, que “misturam a dor e e a alegria” , pois  trazem “na pele essa marca” e possuem a estranha mania de ter fé na vida”, e merecem “viver e amar como outra qualquer do planeta”.

Mas se Maria Maria era uma Preta Velha cheia de sabedoria, também no conjunto de canções de Milton Nascimento encontramos sua versão masculina na figura do Pai Grande, que na música de mesmo nome é rememorado pelo filho:

Meu pai Grande,inda me lembro e que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai, hoje vou criar você
(…) De minha saudade sem você cantar de onde eu vim
É bom lembrar todo homem de verdade
Era forte e sem maldade
O dia vai, o dia vem
Todo filho seu seguindo os passos
E um cantinho pra morrer
Pra onde eu vim não vou chorar
Já não quero ir mais embora
Minha gente é essa agora
Se estou aqui, trouxe de lá um amor tão longe de mentiras
Quero a quem quiser me amar.

Segundo Carlos Alberto da Silva, nesta canção surge a 
“figura masculina do curandeiro, do contador de estórias, do rememorizador das aventuras e desventuras de um povo sofredor e que, mesmo em meio ao sofrimento, canta, dança, brinca e se diverte”. 
A  memória do Pai Grande aparece aqui como a própria ligação com a África de origem, da qual se deve lembrar, inclusive para poder criar nesta nova terra um lugar de amor e longe de mentiras. Esta canção   já havia sido primeiro gravada no álbum álbum Milton Nascimento (Beco do Mota), de 1969, porém é na versão de 1970, depois de passar por um aperfeiçoamento no arranjo com a ajuda do grupo de músicos do Som imaginário,  que ela refinou-se na  harmonia, tornando-se ainda mais  sofisticada, especialmente em relação ao tratamento da percussão, que  ali já não aparece mais simplesmente como acompanhamento da voz do cantor, mas já atuava autonomamente na canção,tornando-se definitiva.

Aliás, o álbum Milton, de 1970, marca uma transformação visível de Bituca, no sentido de assumir sua identidade negra, o que começa ficando claro através da capa e no encarte do disco, feita pelo designer Kélio Rodrigues, nos quais Milton aparece desenhado como um belo rei negro. No que se refere a sonoridade, segundo nos explica o professor de canção popular brasileira Ivan Vilela (USP), essa nova maneira de lidar com os batuques inaugurada por Bituca naquele  no álbum  trouxe uma nova sonoridade africana para a música brasileira, esta não mais ritmada e malemolente como a expressa pelo samba, mas mais clara e direta.  Vilela nos esclarece,ainda, que isso  seria explicado em trabalhos de história antropológica como Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura, que lembra as diferenças culturais entre os grupos de africanos que vieram viver na Bahia e no Rio de Janeiro, que em geral seriam negros “islamizados, alfabetizados e muito organizados em suas lutas” para preservar ao máximo sua cultura de mesclas e interferências;  e Vilela exclarece que  os que se instalaram em Minas Gerais,  para  
“sobreviverem, mesclaram seus traços à cultura dominante, ao catolicismo. Suas religiões foram amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem a sua essência. É essa a África que vem com Milton. A África dos congados e moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões.”
 Destacando o aguçado ouvido musical do nosso Bituca.

Em nossa viagem panorâmica sobre a obra de Milton Nascimento, em busca de marcas da negritude ali registradas, nos guiaram dois anciões, uma Preta e um Preto Velho, que cheios de sabedoria, foram nos mostrando cada lugar onde se escondiam marcas de uma tradição africana renovada, na letra e na melodia das canções, comprovando que Bituca  é, sim, um forte representante da negritude na cultura brasileira, porque não apenas retoma experiências culturais  africanas até então não divulgadas,  como também as recria devido a convivência com estímulos sentidos aqui, o lugar onde todos merecemos viver e amar.

Referências Milton Nascimento
                              
CORPO, Grupo. Histórico. Disponível em          http://www.grupocorpo.com.br/companhia/historico     
BORGES, MÁRCIO. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina.             3ª.ed.São Paulo:          Geração Editorial, 1996.
MELLO, Paulo Thiago de. Clube da esquina: Milton Nascimento e Lô Borges. Rio de        Janeiro:     Cobogó, 2018.(Coleção Livro do disco)
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. 2. ed. rev. Rio de        Janeiro : Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Data de       Publicação1995. ( Biblioteca carioca ; v. 32. Série Publicação científica)
NASCIMENTO,Milton. Pai Grande (1970).
SILVA, Carlos Alberto da. A negritude através de “Maria Maria” de Milton           Nascimento.     2003.120f. Dissertação (Mestrado em Literatura)- Universidade Federal de Santa  Catarina, Florianópolis.
VILELA, Ivan. Nada ficou como antes. Revista USP, São Paulo, n.87, p. 14-27,            setembro/novembro 2010.



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