sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O simbolismo afro-brasileiro no cancioneiro de Jorge Ben e um apêndice sobre sua origem etíope


O simbolismo afro-brasileiro no cancioneiro de Jorge Bem 
Camila Rodrigues (publicado originalmente em 14/maio/2018)
Em 1963 o lançamento de Samba Esquema novo, primeiro disco de Jorge Ben, inaugurou a carreira deste que, até hoje, é um dos mais consolidados músicos negros do Brasil. Logo em sua primeira canção, Mas que nada, Ben mostrou seu estilo até então sem precedentes na canção nacional em uma mistura de samba, bossa nova e jazz e uma maneira peculiar de tocar violão onde se destaca o suingue. Em declaração que relembra sua primeira audição da canção, o crítico musical Tárik de Souza surpreendeu-se com a singularidade daquele som, inclusive supondo que nem mesmo o próprio Ben soubesse de onde teria vindo tanta originalidade. Adiante, Tárik sugere que os caminhos para desvendar aquele enigma musical já estava indicado em pormenores na letra:

Esse samba
Que é misto de maracatu
É samba de Preto Velho
Samba de preto tu

Sendo, então, a trilha que passa pela cultura e musicalidade popular do maracatu e do imaginário de matriz africana e associados ao período da escravidão, como a figura da ancestralidade representada pela entidade de umbanda Preto Velho e na figura do negro rebelde, o Preto Tu, remetendo aos pretos bantos, que seriam, para Souza, a origem da música  afro-brasileira.  Vamos procurar no conjunto de canções de Jorge Ben, o seu cancioneiro, exemplos que nos contam  muita coisa sobre o negro no Brasil e suas relações com as heranças trazidas da África e que aqui foram rearticuladas.

No cancioneiro de Jorge Ben são cantados personagens da história dos negros, e que ali aparecem como heróis e heroínas bravos, simbolizando virtudes e posicionamentos capazes  de inspirar seus descendentes a adotarem uma atitude  positiva diante da vida. O herói mais notável cantado por Ben é Zumbi dos Palmares, tema central da canção Zumbi, do disco Taboa de Esmeralda (1972) e que foi regravada com o título  África Brasil (Zumbi), no álbum África Brasil (1976). Nesta canção Ben sintetiza séculos da história da vinda dos negros para serem escravizados na América, começando por relembrar os locais de onde eles teriam vindo:

Angola Congo Benguela
Monjolo Cabinda Mina
Quiloa Rebolo

E que, na música, seriam os locais de onde vieram os homens a serem vendidos num “grande leilão” e dentre os tais estaria até uma princesa com seus súditos. A partir daí, vemos pequenas cenas da escravidão e, ao final, este processo é enfim interrompido pela incitação do retorno da figura histórica salvadora Zumbi:

o senhor das guerras
senhor das demandas
quando Zumbi chega
É Zumbi quem manda

Nesta imagem de Zumbi ele aparece como um ser mitológico que teria comandado e protegido os ancestrais cativos dos negros e cuja figura pode ser evocada através de encantamentos, já que é senhor das demandas e um dos significados atribuído à essa palavra no vocabulário das religiões afro-brasileiras, é justamente ritual de feitiço. Outra personagem cantada heroicamente por Ben é a Xica da Silva, com canção que leva o seu nome e foi composta para a trilha sonora do filme homônimo de Carlos Diegues, de 1976. Na letra desta música, que pontua frequentemente Xica como “a negra”, é reinterada a ideia da bravura mítica do afrodescendente, com a peculiaridade de que aqui temos não um herói, mas sim uma heroína, que atingiu esse papel por ter quebrado a manutenção da hierarquia social em pleno período colonial, pois passou

De escrava a amante, mulher, mulher
Do fidalgo tratador João Fernandes
e com isso tornou-se
muito rica e invejada.

Na dissertação de mestrado Eu quero ver quando Zumbi Chegar: negritude, política e relações raciais na obra de Jorge Ben 1963-1976 (UFF 2014), o historiador Alexandre Reis dos Santos comenta que ao retratar o universo afro-brasileiro nas décadas de 1960 e 1970, época em quem as políticas raciais ganhavam destaque no país e as religiões que cultuavam orixás como o Candomblé (símbolo de resistência cultural negra)  e a Umbanda (rearticulação tradição dos orixás com tradições indígenas, espiritismo e catolicismo) passavam a fazer parte do imaginário daquela sociedade. Naquele contexto o compositor Jorge Ben não apenas se reconheceu filho da miscigenação racial, mas principalmente escolhe se assumir negro e reverenciar os afro-brasileiros em suas composições, sublinhando que, apesar da realidade opressiva em que vivem até hoje, eles não se colocam como vítimas da sua biografia e seguem lutando heroicamente pela vida.

No festival de música Lollapalooza Brasil 2018, a consagrada banda de rock estadunidense Red Hot Chili Peppers prestou uma homenagem ao Jorge Ben, tocando e cantando em português “Menina mulher da pele preta”, canção gravada no álbum Taboa de Esmeralda (1974). Nesta canção destaca-se outro tema importante daquele cancioneiro, o que aborda a formosura miscigenada da mulher afro-brasileira que desperta desejo. Em um país como o Brasil das décadas de 1960 e 1970 não era comum que canções destacassem abertamente a beleza da negritude feminina, mas Jorge Ben inovou também nisso, compondo verdadeiros hinos nesse sentido como Que nega é essa?, gravado no álbum Ben (1972), na qual assume que a mulher com a qual quer se casar é negra, “Prendada e caprichosa” e para ela promete que

Eternamente essa nega faceira, dengosa,dondoca e beijoqueira
Há de ser minha companheira e minha mulher.

Em Criola (1969), ele nos apresenta “uma fiel representante brasileira”, que por ser negra é “colorida por natureza” e cuja história é bastante semelhante à da sua mãe:

Filha de nobres africanos
Que pelo descuido geográfico
Nasceu do Brasil, num dia de carnaval

Ao contrário do que chegou a supor Tárik de Souza no texto comentado acima, Jorge Ben sabia muito bem de que referências poderiam ter originado a originalidade da sua música, tanto que em entrevista ao programa de TV “Roda Viva” em 18 de dezembro de 1995 chegou a falar sobre sua ancestralidade e contou que foi através de sua mãe, ainda criança, que teve acesso à cultura de seu avô africano e ouviu muita música etíope, batuques e línguas desconhecidas para ele e que no final foram se misturando. Certamente essas memórias tão antigas acabaram compondo uma espécie de base sua trajetória musical.

Como nos conta Paulo da Costa e Silva em seu livro sobre o disco A Tábua de Esmeralda,  Jorge Ben é católico e até chegou a estudar no Seminário de padres na juventude, e essa informação é importante porque se encontram em seu cancioneiro várias referências ao catolicismo, porém percebemos que frequentemente esses marcos simbólicos católicos aparecem permeados pelos princípios africanos, daí se  aproximarem tanto das religiões afro-brasileiras. Um exemplo disso é a canção que compôs ao seu santo de devoção, a chamada Jorge de Capadócia, gravada no álbum Solta o Pavão (1975), que na verdade é a oração a São Jorge musicada, pedindo que o santo torne o corpo intocável, daí esta reza ser popularmente utilizada nos rituais de “fechamento de corpo”. No show acústico MTV, gravado em 2002 Jorge, já conhecido como Jorge Ben Jor, assume claramente a relação direta entre São Jorge guerreiro  e o orixá Ogum, quando introduz na canção o seguinte refrão : “Ogã toca pra Ogum”, como que pedindo ao tocador de tambor dos rituais religiosos afro-brasileiros (Ogã) que toque em reverência a Ogum para  efetivamente fechar o seu corpo, evidenciando a força do simbolismo afro brasileiro no cancioneiro de Jorge Ben.

 Links das músicas citadas no Youtube:


APÊNDICE :Quando a Etiópia estava sendo invadida na primeira Guerra Ítalo-Etíope (em italiano: Guerra di Abissinia ou Campagna d'Africa Orientale) corresponde à invasão italiana da Etiópia ocorrida entre os anos 1895 e 1896 no séc. XIX, seu avô materno Sr. Ben Jorge (sim, era esse o nome dele kkk) saiu refugiado do Mediterrâneo num navio que por um
descuido geográfico atracou para nossa alegria aqui no Brasil. Não tenho informação sobre a vó do Benjor, mas que "D. Silvia Saint Ben Lima" nasceu na fronteira Rio-São Paulo, conheceu o Sr. Augusto Menezes (estivador, Carioca, porém descendente de austríacos) e tiveram um lindo filho que puseram o nome de Jorge, já que na sua gravidez D. Sílvia havia levado uma queda, e temendo deformidades ao feto fez uma promessa à S. Jorge que se o menino nascesse Ben
colocaria seu nome como homenagem...
Conhecida como Sílvia Lenheira, pois mesmo com o grande sucesso do Benjor ela sempre levou uma vida simples em Madureira-RJ e gostava de apanhar galhos para cozinhar num fogão à lenha, (daí o apelido) isso numa casa cor-de-rosa com chão vermelho, teto branco e na janela muitas rosas, além de um cachorro de guarda vira-latas que vivia
latindo no quintal onde havia tbm uma rede num pé de jaca...

(Nascimento Silva, do canal Benjor Cifrado, no Youtube)

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